Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Estamos de "férias" e fomos trabalhar em terapia da fala. Entre outras questões, a certa altura, trabalhámos a interpretação e compreensão de contextos com uma história - noutra língua que não inglês ou francês, porque as piolhas leem logo e perde-se o objetivo da nossa abordagem - sobre uma girafa. O objetivo era tratar a história cruamente: personagens, cenário, problema, ações, resolução. Não era interpretar nem encontrar outros sentidos nem era esse o objetivo, repito.
"Era uma vez uma girafa tão alta tão alta tão alta que nem cabia no livro... Os outros animais da selva, como o leão e os seus compinchas macaco, zebra e crocodilo, riam e gozavam com ela por ser assim, tão alta e tão grande. E a girafa sentia-se triste, deslocada e humilhada. Resolveu encontrar novos amigos que a aceitassem como ela é. E encontrou animais raros e especiais como ela: o porco-espinho, o papa-formigas, a lebre-do-cabo. Inicialmente tudo correu bem pois tinham a particularidade de serem especiais mas não sabiam lidar uns com os outros e a girafa, tão alta que era, era muito desastrada para as brincadeiras dos outros animais e acabava por se afastar e ficar apenas a ver. Até que um dia, a jogar a bola, esta foi parar ao cimo de uma árvore e a girafa percebeu logo que poderia ajudar. Encontrou algo em que era boa! Devolveu a bola aos amigos e foram todos jogar e ver o pôr-do-sol. Fim"
Sou de Letras. Tive alguns dos melhores professores de Literatura do país. Tive de marrar textos e textos sem conta, de várias línguas e origens, alguns até de orige indo-americana ou criola. Chumbei a Psicologia Educacional 3 vezes com 9 e acabei depois a cadeira com 15. Eu tenho uma interpretação muito própria deste texto, independentemente do seu objetivo.
Dado o meu humor hoje - que até começou muito bem, a sério! - o que eu vi neste texto foi uma ingenuidade atroz que eu não vejo em lado nenhum e basicamente a minha adolescência - de forma literal: a gaja muito alta e desastrada que só era boa para ir ao ressalto em basket nas aulas de educação física, as piolhas na forma de animais especiais gozados e afastados pelos outros animais da selva, que se sentem um pouco com isso mas nem entendem bem o que isso é; o final a que nos prestamos: aparentemente eu só sou boa a tirar coisas de coisas altas, as piolhas só são boas a serem especiais - seja lá o que essa "designação" queira dizer.
O meu querido terapeuta do coração já não faz parte da equipa... faltam técnicos com experiência e aquele empenho que faz brilhar os olhos, aquela vontade única de querer ajudar quem (cor)responde... falta-me tempo para poder ensinar - sim, é mesmo esse o termo, "ensinar" - todas as particularidades de uma língua e de uma linguagem que a todos os outros é inata, subdesenvolvida, desvalorizada e desperdiçada... doi-me ter que trabalhar todos os dias, sempre, qualquer coisa, seja de que conteúdo ou currículo for e não poder dar-me ao luxo de parar de treinar porque há retrocessos e ainda me chaparem à cara que "estamos de férias e não fazemos nada"... enoja-me (sim, também esse o termo) a escola (de forma geral) não ter tempo (ou não querer) para usar estas abordagens novas que fazemos nas sessões de terapia e que tão bem fazem às piolhas e ao seu entendimento linguístico (seja em que forma for: escrito, oral)... está para além da minha compreensão, por questões ridículas e burocráticas, estas novas abordagens não poderem ser mais do que um determinado nº de horas por determinado nº de tempo...
Sinto-me a girafa alta demais para caber no livro, a ser gozada pelo resto dos animais (leia-se "sociedade, comunidade, whatever"), a tentar arranjar um grupo "especial" que aceite as minhas particularidades e as dos meus. E chateia-me ser a girafa. Não posso ser a chita mas, de repente, honestamente, a minha vontade é mesmo ser o abutre. E, lá do alto, voar em círculos e ver a decadência e o moribundo e, depois, calmamente e com os meus, atacar. Chama-se a isso "karma". Há quem lhe chame cabra, eu prefiro chamar-lhe abutre. Sabem porquê? Por isto : https://pt.wikipedia.org/wiki/Abutre , porque eles não atacam à toa, porque não desperdiçam energia com o que não conseguem ganhar, porque eles não são os maus da selva, porque eles não voam sozinhos e porque, acima de tudo, são pacientes. Muito pacientes. E no Livro da Selva, até eles salvam o Mogli. De quem? Do tigre... Interessante, não?
-------------- Estamos também no Facebook --------------------