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Falamos muito de História cá em casa, pois é tema que nos fascina. E vêm-se muitos episódios sobre acontecimentos históricos. Mas também se fala muito de realidade por cá. As piolhas sabem que já trabalhei com alunos de nacionalidades israelita, síria, ucraniana, russa, e, mais recentemente, de PALOP. À exceção destes últimos, todos os restantes tinham algo em comum: eram refugiados de guerra. Fugiram, deixando tudo para trás, do barulho e perigo das bombas, dos ataques, da vida em bunkers, da morte.
Sempre que algum desses alunos deixava escapar uma memória (lembro-me de um que fugiu da Síria para o Egito antes de ir para França e depois para Portugal), a minha mente fazia um esforço gigantesco para tentar sequer visualizar como teria sido essa provação e o meu coração encolhia até quase não bater. Nenhuma criança merece passar por isto, nenhuma. Nenhum ser humano merece fugir de uma guerra que nunca pediu e não fez nada para a despoletar.
No dia em que a Ucrânia foi invadida, eu nem conseguia imaginar a dor com que uma amiga devia estar por ver o seu país a ser destruído (vamos deixar as razões para os verdadeiros entendidos), ou tentar contactar a família. E eu deixei as piolhas na escola, no meu país seguro, na minha vila segura onde conheço quase toda a gente e todos nos conhecem e ia olhando para todos aqueles miúdos e pensava com dor como seria termos todos de fugir à pressa, no meio do caos. E fui trabalhar com o coração apertado, a imaginar cenários dantescos e a agradecer estarmos neste cantinho.
Os meus alunos não estavam muito melhor que eu... A minha aula de Inglês foi substituída por uma aula de História recente e de Cidadania. Copiei descaradamente a ideia de um professor meu amigo sobre o que faríamos, sentiríamos, colocaríamos em menos de 5 minutos numa mochila antes de fugir na direção oposta ao avanço do inimigo. Todos os nossos pensamentos foram para a família. É o mais importante.
Não devíamos ter de vivenciar estas experiências, nenhum destes conflitos bélicos. Lembro-me da Guerra do Golfo e sentia medo de que, sei lá como, cá pudesse chegar. Jamais pensei que, em pleno século XXI, ainda houvesse cenários de guerra, fosse onde fosse.
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Precisámos, por motivos que não importam para aqui, de ir a uma daquelas consultas de saúde para situações agudas (ou lá como se designa aquilo). O nosso médico não estava pelo que fomos atendidas por outra médica. Costumo despachar logo o assunto para "desconhecidos" e jogar logo a cartada do diagnóstico de autismo para evitar dissabores e mal-entendidos. Desta vez, a nossa aflição era tanta que não me lembrei e a piolha a ser vista também não.
A médica foi irrepreensível e de uma simpatia e profissionalismo que eu tinha mesmo de escrever sobre ela. Conseguiu acalmar a ansiedade astronómica da piolha, falou com ela de forma natural e sem a infantilizar, descreveu todos os procedimentos, explicou tudo o que dizia respeito a questões anatómicas, respondeu às dúvidas colocadas e ainda esclareceu o objetivo dos exames e o que fazer em caso de alterações. Nunca tínhamos sido tão bem atendidas e tratadas sem chapar com "Antes de começarmos, informo que ambas são autistas e há diferenças nos comportamentos e compreensão imediata de algumas coisas". Podia ser sempre assim, não era? Podiamos ter sempre pessoas e profissionais assim que tratam todos com respeito e sem fazerem julgamentos precipitados, não era? Fiquei muito feliz com este tratamento.
Já no exame clínico, a própria piolha, nervosa como tudo, acabou por informar que era "meio autista e que estava muito ansiosa e nervosa e tinha muitas dúvidas". A médica sorriu e expliquei que ela é mesmo autista. No carro, depois de tudo passado, dizia a piolha "que parvoíce, mãe... insultei-me a mim mesma...".
Estão a crescer e a saber como abordar as suas próprias questões e a sua própria diferença. Se tivermos quem colabore do outro lado, tudo correrá pelo melhor.
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É seguro dizer que encontrei a minha tribo. Aquele grupo de mulheres maravilha que me permite ser eu mesma, que me permite ser atípica, que me permite ser mãe atípica e que me dá espaço quando não quero (ou não consigo socializar).
Durante toda a primeira infância das piolhas não tive saídas ou vida social - porra, pá, não tive "amigas" (só podia contar, com duas ou três pessoas e a distância não ajudava. A minha adorada L. fez tanto por mim... já não amigas assim). Era impossível sair para um simples jantar e custava-me muito pedir aos avós que ficassem com elas quando eu sabia o quão cansativas e exigentes elas eram e o quão mal (e pouco) dormiam. Um dia, mais crescidas, a minha lourinha favorita, como carinhosamente lhe chamo, convidou-me para um jantar e foi como se renascesse. A minha melhor amiga emigrara e, apesar de o marido ser sem dúvida o meu melhor amigo, há coisas que só se discutem com gajas. São a minha tribo, sem dúvida, mesmo quando eu não quero uma tribo.
Uma das coisas que mais ânimo me dá é poder ter uns minutinhos e tomar um café com elas antes de ir para as aulas. Não sei colocar por palavras o quão importantes são e o quanto gosto delas, por estes pequenos momentos que me dão porque, para mim, sabem a muito e são grandes. E posso ser eu mesma, com todas as minhas características estranhas e mau feitio e sempre a acelerar que elas não me julgam, nem me criticam, nem se importam. E isso vale ouro. Já me viram rir até às lágrimas e também já me enxugaram lágrimas. E também já as fiz chorar comigo (desculpas à minha professora de matemática favorita - que é mesmo, senão eu nunca diria isto).
Sei, no meio desta melice toda, que sou afortunada por ter bons corações ao meu redor. Obrigada.
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Cérebro de mãe = plasticina variada com cenas estranhas agarradas e a secar.
Mãe vai à farmácia e pede duas marcas diferentes de anti-histamínicos (uma para o pai, outra para as filhas). E segue-se todo um enredo à CSI ou à Criminal Minds, não esteja eu a pedir ali umas dosesitas de exctasy ou uma merdice qualquer sintética de rua, porque falta a receita - aquele papel (ou mensagem divina) que desbloqueia o acesso à levocetirizina e à desloratadina para as quais nunca me foi exigido nada a não ser o devido valor monetário . A coisa resolveu-se ao verificar o meu histórico (ah pois é, também há disto ó Evaristo naqueles locais) e lá trouxe os ditos com a promessa de levar a receita para a próxima. Certo.
Segue-se o ibuprofeno. Se fosse de meia dúzia de centenas era preciso o papel (qual papel? O papel. Mas qual papel? O papel! - Pronto, vá, o SMS) mas como são menos duas centenas, é tranquilo. Por aqui se vê, que à dúzia não é mais barato.
E mais três testes, não de gravidez, que essa fase e anseio já passaram há muito, mas os que detetam covid. Tudo na boa. Muito simples, até.
E, ponto, inspira, expira e não pira e está feito. Mãe vai ao carro colocar tudo e apercebe-se que não aviou o papel (qual papel? O papel, esse papel) que desbloqueia a paroxetina. Ah, mas desta vez eu tinha um papel!!! Foi rápido: papel, paroxetina, conta certa, recibo.
Mãe trata de todos e esquece-se de si. Mãe não pode ser distraída com questiúnculas burocráticas senão o cérebro de mãe seca ali mais uns quantos neurónios. Mãe precisa de ferias. E de menos papéis. A menos que sejam aqueles emitidos pela Casa da Moeda. Desses aceito.
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"Tu não tens vida!"
"Vais acabar o curso e casas-te logo, é?"
"Queres acabar como os teus pais?" (O meu pai era emigrante mas a minha mãe não).
Ouvi isto tantas vezes em miúda. Magoava-me profundamente mas eu não desgostava de todo de como as coisas corriam. Com muita dificuldade, é certo, mas os meus pais estavam lá para mim, apesar de serem muito conservadores em relação a algumas coisas. Se tivesse uma vida como a deles, em que alcançaram com sucesso os seus objetivos, não estaria mal.
Quanto ao ter vida, tenho a vida que escolhi e adaptei-me ao que me foi imposto. Casei mal fiz o estágio, é certo, mas deveria ter casado mais cedo - afinal até já estava a pagar casa e tudo. Foi uma das melhores decisões da minha vida
Ontem, disseram às piolhas que não tinham vida e que estavam fartos delas. Pois, temos pena. Eu também estou farta de gente parva e, no entanto, eis-nos aqui.
As piolhas, ainda estavam na minha barriga, e já tinham coleções de Beatrix Potter e idas à praia, por exemplo. Sempre nos regemos por sermos uns pais rigorosos, presentes e esforçados. Nunca lhes faltou absolutamente nada e têm vivências incríveis, desde as mais loucas (speedboat no Tejo ou rappel nos bombeiros ou idas à neve acabada de cair) às mais comuns (um fim de semana fora, um almoço na praia, ver o pôr do sol à beira mar) às do momento (tomar o pequeno almoço na praia a ver o nascer do sol ou levar um termo com café para a serra ou almoçar chinês em casa). Elas têm experiências únicas, são amadas até doer, são miúdas esforçadas e educadas. Isto é vida. Isto é viver.
Doeu muito ouvir isto. Doeu tanto que fiquei com tanta raiva e tanta mágoa que, à noite, eu estava exausta.
Os miúdos conseguem ser cruéis. E conseguem ser maldosos. O que elas ouviram foi dito com maldade, não foi na brincadeira.
Mas, como lhes costumo dizer, elas são superiores a isso. Tal como eu fui superior às bocas foleiras que me mandavam antes. Como também costumo dizer, o verde fica mal a muita gente.
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