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Tenho estado rodeada de doutores e nunca usufruí dos seus conhecimentos. Eu sei, ingrata que sou. Todos estes licenciados, na tão prestigiada Universidade da Vida, na qual só entramos se tivermos uma média de palpites altíssima e um atestado igual aos de condução renovados aos 80 anos, são até uns bons-samaritanos: nunca lhes falta diagnóstico, receituário ou até uma 2ª opinião. A verdade é que eu sou mesmo uma mal-agradecida.
Desconstruamos.
Educação
- O teu primo é sempre tratado por “senhor doutor” na escola onde está a dar aulas. Tu, nem percebo que professora és, que não tens paciência nenhuma e só falas alto e coitados dos teus alunos. Fosses como ele e o mundo seria muito melhor.
- O que dás às miúdas para terem tão boas notas e serem tão educadas? Qual é o medicamento porque alguma coisa tens de lhes dar.
- não há bullying, isso são tudo mal-entendidos.
- As miúdas são autistas porque vocês as colocaram numa creche quando nós é que as estávamos a educar.
A realidade: ele só deu um ano de aulas (e fez muito bem), eu dou aulas há 20 anos, continuo a falar alto (fruto de uma educação serrana e da profissão) e continuo a não ter paciência nenhuma. No entanto, deve haver poucos que se preocupem com os alunos como eu, mas isso não se vê e se não se vê, já sabemos que não existe.
Não dou medicamentos às miúdas, o médico dá quando ele acha necessário e o que acha necessário. Não há medicamentos que tornem as pessoas mais inteligentes ou mais educadas. Lamento a desilusão. Mas quando houver eu aviso e tornar-me-ei acionista dessa farmacêutica.
Houve bullying sim, não houve mal-entendidos nenhuns, mas sabemos como o sistema funciona. “Bem prega Frei Tomás…”
Não, as miúdas são autistas porque a genética é fodid@, não tem a ver com a educação distorcida dos avós.
Medicina e especialidades
Pediatria
- As meninas são tão lindas, elas falam mais tarde, cada criança tem o seu ritmo.
- Elas são muito agitadas porque são crianças, todas são assim.
- Elas falam inglês porque tu as pões a ver televisão em inglês.
- A minha filha também não gosta de ervilhas e não é nada como tu dizes, está tudo normal.
- Isso são tudo coisas da tua cabeça, qual é o mal de não falarem nada aos 3 anos e usarem fralda até aos 5?
- Tu é que as pões doentes.
A realidade: diagnóstico de perturbação do espectro do autismo na primeira consulta de desenvolvimento, confirmado desde então, agosto de 2010 até janeiro de 2023. Autistas não verbais, altamente desreguladas e desfasamento de comportamento, questões sensoriais e tudo a que temos direito, pois claro.
Neurodesenvolvimento:
- As meninas não têm nada, lá estás tua a exagerar.
- Elas são tão bonitas. E até têm boas notas sem medicação.
A realidade: mantém-se o tal diagnóstico de perturbação do espectro do autismo da primeira consulta de desenvolvimento, confirmado desde então, agosto de 2010 até janeiro de 2023.
Dermatologia:
- Ela lá arranca cabelo, lá estás tu com as tuas coisas! Isso passa! Vai cortando que isso passa.
- As meninas não têm piolhos!!! Tu é que andas doida!
A realidade: tricotomia e uma estereotipia autista.
Sim, as meninas apanharam uma carrada de piolhos tal que andei semanas a asfixiar peluches em sacos de lixo, a lavar legos na máquina da loiça, a passar os colchões e sofás a ferro de vapor e a lavar carpetes de joelhos. Portanto, sim, os piolhos existem e qualquer criança pode apanhar, em especial, se partilharem almofadas e mantas e tapetes como elas o faziam na escola.
Oftalmologia
- Tem lá miopia num só olho! Tu dizes cá cada coisa.
- As consultas de revisão são geralmente daí a 12 ou 14 meses. Vê se te acalmas.
- como é que uma gémea tem miopia e a outra não?
A realidade: -3,5 no olho esquerdo. Apenas. E já mudou de lentes 3 vezes. Em pouco mais de ano e meio. Vá, minto: descobrimos no mês passado que também tem agora (AGORA) -0,5 no olho direito.
Os gémeos, mesmo os monozigóticos, podem e terão sempre algumas diferenças pois apesar da partilha idêntica e ADN é isso mesmo – idêntico e não 100% igual.
Ortopedia
- As meninas estão tão crescidas, vão ser mais altas que tu. Mas porque estás a dizer que não? Que raio de mania que tu tens, sempre a pôr defeitos nas miúdas!
- Elas serão altas sim porque tu és alta.
- Tem a coluna torta por causa das mochilas que carregavam, contigo também foi assim.
A realidade: ossificação da ilíaca completa com sinal de Rissler bem visível significa que a componente ósseo-esquelética já está toda formada e a probabilidade de se crescer mais será muito reduzida.
A altura de um indivíduo varia de muitos fatores e pode não ser herdada via linha materna.
A escoliose aqui é idiopática, ou seja, sem causa e muito característica nos adolescentes, não tem nada a ver com mochilas, até porque a gémeas monozigótica carregava bem mais peso e não tem escoliose severa.
Psicologia
- mas por que raio têm elas psicologia? Andam doentes? Deprimidas?
A realidade: são autistas, faz parte dos apoios técnicos a usufruir e muitas das sessões serviram de preparação para a etapa escolar seguinte.
Planeamento familiar
- Ficava-te agora tão bem mais um filho.
- E por que não? A filha da vizinha da prima da sogra da tia também foi mãe de novo aos 47!
- Como é que tu sabes que viriam mais 2? Ou autistas? Lá estás tu!
A realidade: não. Não quero. Não quero. Quero ser egoísta e ir para os copos com as amigas, poder dormir toda a noite e/ou toda a tarde, não gastar dinheiro em fraldas e leites, aproveitar as minhas mamocas que estão todas giras, sair sem carregar ovos.
As estatísticas são-nos muito estranhas… A probabilidade de voltar a ter gémeos é maior do que eu ganhar uma raspadinha. Dizem que há hereditariedade e genética. Logo……
Enfermagem:
- Essa testa vai precisar de pontos, mania das modernices desses autocolantes.
- 38º não é febre. A febre combate as infeções.
A realidade: a testa, aliás, as testas de ambas, não precisaram de pontos e sim, numa delas, foi até ao osso. 38º é febre sim e uma delas vai dos 37,2º aos 39 em questão de minutos, portanto, creio que uma pequena ajuda medicamentosa não é de descurar.
Economia e Finanças
- As meninas com essa idade já mexem num computador?
- Vais-lhes dar um telemóvel?
- Este dinheiro é só para quando elas tiverem 18 anos.
- Vocês são uns ingratos! Pagam-vos o apartamento e ainda são como são.
A realidade: sim, mexeram num computador assim que se aperceberam que tinham dedos que se mexiam e olhos que se moviam. Sim, também tiveram um telemóvel no último ano do 1º ciclo (de teclas e a partilhar) e depois um iPhone 4, porque, olhem, é a loucura e o status.
Aos 18 anos já não precisamos de fazer terapia da fala, terapia ocupacional, psicologia, fisioterapia, coletes corretivos, logo, se é para ajudar é quando precisam e não quando já não precisam destes apoios. Calma, que não lhes faltará dinheiro para a carta de condução nem propinas e carro já têm porque, olhem, é a loucura e o status.
Se eu tivesse quem me pagasse a casa, garantidamente, não vivia num T2. Ga-ran-ti-da-men-te.
Que posso mais dizer? A partir deste momento, burra e ignorante que sou – não esquecer o ingrata e mal-agradecida, só os doutorados à minha volta é que sabem, não é assim? Portanto, smile and wave, boys, smile and wave.
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5 - 2023
5*
Recomendo, recomendo e volto a recomendar! Ri muito, ri até às lágrimas, tive ataques de tosse por estar a rir. Vale mesmo a pena ler.
Quem é filha - sim, no feminino - de uma mãe nascida na geração boomer, sabe quase todas as pérolas que constituem os 101 capítulos deste livro, já as ouvi quase todas e, pior, ou já disse ou acabará por dizer algumas - poucas, que eu cá já sou millenial - aos seus filhos.
"As coisas que a minha mãe me dizia" foi-me oferecido no natal. Pelo meu pai. Desconfio que há alguma mensagem subliminar algures. Mas, poderei dizer-lhe e confesso que, de facto, algumas destas pérolas estão no gene da maternidade. Das 101, deixo apenas algumas que, volvidos tantos anos, também eu digo:
- mas pensam que sou feita de dinheiro?
- estás descalça porquê?
- levem o casaco mais quente, olha que hoje está mais frio - levem, não vá ser preciso (quem diz casaco, diz gorro, cachecol, óculos de sol)
- o que está no prato é para comer
- queres que te dê uma razão para chorar?
- vocês cansam-me
E pronto, não continuo mais. Apercebi-me que as mães espanholas são iguais às mães portuguesas; que a geração boomer tem, definitivamente, traumas relacionados com a comida (guerra civil e Estado Novo); que, apesar de tanto dizerem que as cansamos e qualquer dia as matamos de desgosto, nos amam e nós as amamos; que, no fundo, algumas destas coisas que nos diziam até à exaustão neuronal eram - preparem-se para o cliché maternal - para nosso bem.
É um livro que não se consegue parar de ler por ser tão familiar, um familiar bom, igual ao de tantas de nós e com mães como as nossas. Boomers and millenials. Escrito para blog e depois em livro, é uma lufada de ar fresco ler estes textos. E uma gargalhada garantida, também.
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As novas propostas de revisão dos concursos interno e externo para professores vão, clara e largamente, prejudicar os alunos – em especial, os alunos que usufruem do DL 54, nas suas vertentes mais abrangentes (medidas seletivas e adicionais). Na minha ótica de professora contratada e mãe atípica, posso assegurar que a minha interpretação do documento emanado pelo MEC, é de retaliação disfarçada de propostas de pseudo-segurança e pseudoestabilidade para docentes – e, consequentemente, os seus alunos. Mas não é só para professores contratados: os professores em quadros de zona ou de escola também têm o seu lugar ameaçado e à disposição quase despótica do ministério – não há quase nenhuma margem para mobilidade e esqueçamos a mobilidade por doença que ainda muito se alterará em relação a isso. A indignação é enorme e o caos, se ainda não se instalou, instalar-se-à, não duvidemos. Professores sem a menor estabilidade e na maior precaridade desde os ids anos 2000, irão, seguramente, desistir do ensino e eis o resultado anunciado que é mais que evidente: a escassez de professores trará disciplinas com 0% de aulas (e obviamente, avaliação).
Eu queria muito, mesmo muito, acreditar num sistema de ensino de qualidade – que é possível e temos muitos profissionais que o proporcionam -, inclusivo – que também é possível e, mais uma vez, há muitos profissionais que o proporcionam – mas, honestamente, começo a perder a esperança, vejo o (meu) futuro um bocado cinzento e cada vez mais incerto, temo que muitos alunos perderão aprendizagens essenciais (as verdadeiras, não aquelas que alguém decidiu colocar num documento em que temos de fazer copy-paste para 300 outros), temo que o nosso frágil sistema de ensino se torne anedótico nacional e internacionalmente, temo que vamos todos perder educação. E o resultado não será um povo analfabeto como nos idos anos 50 mas um povo relativamente literato (o básico) mas sem capacidade de discernimento, pensamento crítico ou de questionar – será um povo fácil de manipular, logo, de governar.
Agora vamos entrar na escola, numa sala de aula com uma turma de 2º ciclo, digamos, em que temos cerca de 20 alunos, 2 deles com RTP (em incumprimento com o estabelecido no Despacho Normativo que regulamenta o nº de alunos/turma quando há alunos com necessidades específicas com Relatório Técnico Pedagógico) e cerca de 5 com Medidas Universais. Entre outras, uma das medidas para os alunos com RTP, é o apoio de Educação Especial mas não há professor porque o horário é de apenas 10h = 620 euros e, com a obrigatoriedade de concurso a dez QZP, muitos contratados não arriscam. Este horário não pode ir para ninguém do quadro pois os horários desses professores já estão preenchidos. Portanto, entre reservas de recrutamento vazias ou rejeitadas e ofertas de escola incompatíveis com acumulações, estes 2 alunos com RTP não usufruirão de um dos seus direitos, serão diretamente prejudicados no seu sucesso académico e o MEC não quer saber. E, agora, multipliquemos isto por milhares de alunos em milhares de turmas e vamos mais longe: alunos de necessidades específicas em unidades multideficiências em que há falta de professores especializados. Quem é o grande prejudicado? Pois é. Não se pensou para além do óbvio.
O percurso escolar das piolhas está na sua reta final, já não tenho grandes preocupações em relação ao que lhes possa acontecer porque, lá está, entretanto, terminarão e uma nova fase se seguirá. Mas não consigo deixar de pensar nos meus alunos. A escola como a conhecem agora – que é o dito “normal” para eles pois não conheceram outras versões – irão enfrentar uma era sombria e não sei se haverá luzes no fundo do túnel, nem sequer com a suposta ajuda do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.
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#3/2023
5*
Leitura muito pesada e que nos toca no coração, que nos comove e que nos faz pensar que tipo de humanidade é, afinal, o ser humano. Joana Amaral Dias faz aqui um levantamento dos psicopatas portugueses mais conhecidos. Sim, porque Portugal também teve a sua dose, senão, relembremos: o violador de Telheiras, dos finais dos anos 90; o rei Ghob do castelo dos horrores, do início dos anos 2000; o triplo assassinato das irmãs numa aldeia de Braga na passagem do milénio; o cangalheiro da praia de Fortaleza, no Brasil; o serial killer GNR de Santa Comba Dão; o estripador de Lisboa; a matricida; a última condenada à morte por terras lusas, etc. - são 13, num total de horror e perversão.
Apesar do conteúdo, a leitura flui, ou porque as memórias de termos ouvido ou visto algo sobre o crime nos noticiários ou porque a proximidade geográfica o fazia ouvir ou porque se quer saber mais sobre o que possa ter motivado aquela pessoa a cometer tamanhas atrocidades.
Pessoalmente, este livro está ao nível de episódios de uma série policial ao estilo Criminal Minds. A grande e cruel diferença é que todos estes crimes são reais, foram cometidos, passaram-se na vida real. Atrozmente, cruelmente, a sangue-frio, sem consciência ou arrependimento. Psicopatas, portanto.
Recomendo, com cuidado.
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Talvez seja sonho, talvez seja ilusão - talvez seja, apenas, sorte - mas eu ainda acredito numa escola inclusiva.
O que eu entendo por escola inclusiva é aquela que abre as suas portas a todos os alunos, independentemente das suas características, sejam elas físicas, mentais, neurológicas, de nacionalidade, de credo, de status.
É aquela que encontra os recursos humanos e materiais e fornece aos seus alunos as ferramentas para que possam alcançar o sucesso nas suas tarefas - sejam elas escolásticas ou vivências do quotidiano - através de recursos humanos dotados do que necessitam para realizar o seu trabalho (e que, na minha ótica, tem de incluir, obrigatoriamente, empatia, sensibilidade, sentido de adaptabilidade e flexibilidade e uma constante vontade de aprender).
É aquela que para de insistir em cursos da treta só para fazer números e se autopromover à conta de financiamentos de siglas do tamanho de meio alfabeto. É, ao invés, aquela que tenta pensar fora do comum e procura a promoção do sucesso dos seus alunos através de ações bem documentadas, na altura apropriada, e consegue fazer a ponte entre vida escolar obrigatória até aos 18 anos/12º ano e a vida pós-escolar, com a colaboração conjunta de pais-técnicos-médicos-professores para que se tome a decisão mais acertada possível, tendo em consideração as capacidades, dificuldades, autonomia, perspetivas, etc do aluno. Seja ele um aluno com ou sem deficiência.
É aquela onde nos sentimos seguros, motivados e respeitados - os alunos, os pais e os professores - e sentimos que podemos fazer sempre mais, dar sempre mais um pouco de nós.
É aquela que consegue ver para além do óbvio, seja um diagnóstico, seja um rótulo, seja mesmo um processo escolar agregado... sou adepta do start from scratch e de dar sempre uma segunda oportunidade; somos todos diferentes e interagimos de forma diferente com pessoas diferentes.
Pode ser uma utopia mas quero muito acreditar que, algures, é possível e que, pouco a pouco, haja cada vez mais pessoas empenhadas em tornar essa escola uma realidade. Porque, eu sei que é quase possível. Nunca será o pináculo da perfeição mas poderá estar muito próximo do cumprimento legal e básico de direitos humanos - os direitos de todas as crianças.
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