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Como diz uma vizinha de quem gosto muito, falar destas coisas abertamente também é ativismo.
Cláudia Carvalho e nós, no papel de pais, Alda Coelho, pedopsiquiatra, Albertina Marçal, mãe e fundadora do Centro ABC Real, respondemos à jornalista Leonor Rodrigues Poças e Leonor Antolin Teixeira, da Revista LuxWoman e o resultado foi uma reportagem algo emotiva, real, direta, que saiu na revista de agosto.
Para quem possa ter dúvidas ou queira ler várias realidades sob um único nome - que um dia ainda poderá transformar-se num plural, num -ismos -, creio que a matéria é de leitura acessível e informada sobre autismo, escola, diversidade, inclusão e diferença.
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O ensino à distância.
Esta é a realidade que nos assiste desde o dia 16 de março de 2020. Foi uma reinvenção à pressa, sem preparação, sem aviso com a devida antecedência. Mas foi o desafio que acabámos todos, de uma forma ou outra, por abraçar e aceitar, apesar das inúmeras dificuldades e do acesso.
A escola que se quer inclusiva ainda não consegue chegar a todos agora – mas, se pensarmos bem, já antes não conseguia chegar a todos. Lembremo-nos das inúmeras batalhas travadas para que os direitos básicos de crianças com necessidades específicas sejam cumpridos na íntegra mas também dos que abandonam a escola. Sim, apesar da escolaridade obrigatória ser até ao 12º ano ou 18 anos, a verdade é que ainda há quem fique pelo caminho. E isto ainda não é a definição de escola inclusiva. Lá chegaremos, quero muito acreditar.
Na nossa nova realidade, com o ensino à distância, vejo os dois lados: o de professora – o meu lado – e o do aluno – as minhas filhas. Ambos os lados estão cheios de trabalho, a esforçar-se para cumprir o planificado, o proposto, o esperado; ambos os lados se sentam de manhã ao computador e saem ao final do dia. Não é fácil, não é o ideal, não é o desejado – mas é o que temos por agora e, que, de uma forma ou de outra, todos se esforçam para que funcione e para que chegue aos alunos.
Vejo um esforço imensurável de colegas que mesmo aos fins de semana enviam emails e notificações para que não se falhem prazos e vejo uma preparação de aula e planos semanais a delinear a serem feitos com uma semana de avanço, sem prejuízo do trabalho a desenvolver na semana anterior. O enfoque na avaliação padronizada e estruturada com fichas e testes e provas está diluído e transformado. E isto é uma coisa boa.
Mas não irei alongar-me em questões pedagógicas relacionadas com o ensino à distância. Não é a mim que compete essa avaliação. A mim compete-me adaptar-me e fazer os meus adaptarem-se. E isso tem corrido surpreendentemente bem, apesar de algumas dificuldades – técnicas e pessoais. A aprendizagem tem sido bem mais transversal e alargada do que estar apenas numa disciplina, numa qualquer classroom, em frente a um computador.
– é necessário saber ler o horário enviado e gerir aulas síncronas e assíncronas, aproveitando as assíncronas para fazer os trabalhos pedidos;
– é necessário saber gerir algumas plataformas eletrónicas diferentes do que se usava habitualmente e saber fazê-lo em segurança (passwords, permissões, etc.);
– saber gerir o tempo para ter todas as tarefas feitas e entregues dentro dos prazos pedidos;
– é necessário continuar a ter rotinas saudáveis: levantar num horário, vestir como se fossemos para a escola, lanchar adequadamente nos devidos intervalos, auxiliar em pequenas tarefas em casa;
– saber usar todo um hardware à sua volta: computador, telemóvel, impressoras, scan, tripé, etc.
– é necessário saber ler nas entrelinhas dos chats de colegas o que é dito, como é dito e se há ali algo de relevante, de perigoso ou apenas conversa fiada;
– é necessário estarmos preparados para imprevistos e saber lidar com eles: a ligação que cai, a rede que tem oscilações, a impressora que só funciona depois de reiniciar o computador, o sistema operativo que é lento, etc.
No nosso caso, a melhor coisa que o ensino à distância nos trouxe – além da gestão pessoal das coisas no nosso espaço familiar – foi o fim dos episódios de bullying. Não há nada que valha mais do que isto. Não há vontade alguma de regresso a uma suposta normalidade escolar que me faça mudar de ideias. Eu sei que é importante ter a questão social resolvida, eu sei que a vida real é entre pessoas e não numa bolha no nosso espaço pessoal, eu sei que isto é apenas algo passageiro. Mas temos tido uma paz que não experienciávamos desde junho do ano letivo anterior.
Sei, infelizmente, que ainda que a nossa casa seja mesmo o nosso castelo, outras há que são verdadeiros infernos e a escola seria o oásis de salvação. Daí a importância de se ver que a escola será sempre uma sociedade em miniatura, com os seus problemas e ações, com as suas especificidades tão particulares e tão abrangentes ao mesmo tempo. Mas, agora, em setembro deste ano, para o ano, daqui a 2 ou 5 anos, esta escola tem se se reinventar e jamais voltará a ser o que era. E nós adaptar-nos-emos.
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Leia-se o que ela diz sobre a perturbação. Ando a dizer isto há anos. Para mim, tudo isto e o que realmente importa, nas palavras da Carolina Deslandes, que são as minhas palavras desde 2010 e as de tantas outras como eu e como ela e que dizem a mesmíssima coisa:
“O autismo continua a ser visto como um problema. Algo que torna as pessoas diferentes e esquisitas. Pois eu olho para o Santiago e acho que os esquisitos somos nós. Com o nosso filho entendi que as palavras são o meio mais fácil de comunicar, mas não o mais bonito. Ainda sem falar, o Santiago já me disse os mais bonitos poemas, já me mostrou cores no mundo que eu não sabia que existiam, já me disse que me amava ao roçar o seu nariz no meu e ao encostar a cabeça no meu peito. Vê-lo superar-se a cada dia, vê-lo partilhar e crescer é um privilégio. E eu hei de estar sempre lá na primeira fila, a aprender tudo o que ele quer ensinar."
É aqui que os caminhos ditos em surdina ou não, os "não parecem ter nada", "há casos bem piores", "isso são coisas da tua cabeça", "eu tenho anos de experiência com outro tipo de situações e está tudo bem", vão dar.
Não é bater no ceguinho, não é desculpabilizar, não é insistir - é fazer ver as coisas como são. Autismo no feminino é diferente, é moldável, é disfarçável. Mas não é sinónimo de que, ao fim de uns quantos anos de terapias e comparando com outras situações, esteja tudo bem. É sinónimo sim de que teremos de continuar a trabalhar porque as questões linguísticas e relacionais continuam com limitações e, de forma a torná-las minimamente funcionais, precisamos de ferramentas, estratégias e outros que tais para lá chegar.
"Muitos profissionais e famílias utilizam a expressão “sair do espectro” para dizer que determinada pessoa perdeu suas características autísticas, portanto, não mais poderia ser considerado autista. É curioso constatar que uma boa parte deles também afirma acreditar ser o autismo uma condição genética (como confirmado pela ciência) - uma configuração cerebral diferente. Este é um posicionamento no mínimo contraditório. Se é uma condição genética, não existe sair do espectro. São perspectivas excludentes.
No texto de hoje, compartilho com vocês cinco motivos pelos quais considero “sair do espectro” uma expressão enganosa, irresponsável e nociva.
1 - Perpetua a desinformação. Alguns alegam que, se a pessoa não mais apresenta os sinais que definem o diagnóstico, não há mais como ser “enquadrada” numa classificação diagnóstica oficial. Isso revela que, no fundo, se apegam àquela visão ultrapassada do autismo representada pelo menino do filme, que não fala, não olha pra ninguém e se balança sem parar. Como se não tivéssemos avançado anos-luz desse retrato emblemático e não conhecêssemos todas as variadas formas de manifestação do autismo e seus sinais mais sutis. Além disso, sendo, por definição, uma condição do desenvolvimento, é mais que esperado que os sinais evoluam com o tempo (estamos falando de maturação de sistema nervoso central!). Muitos autistas tornam-se indistinguíveis dos seus pares. Mas continuam sendo autistas. Nenhum manual de critérios diagnósticos diz o contrário. Alguém já leu algo como “os sinais que definem o autismo devem permanecer constantes e imutáveis para que o diagnóstico se mantenha”?
2 - Alimenta a indústria da cura e o ego de profissionais desonestos. É óbvio que todos nós, profissionais da área, trabalhamos para que nossos pacientes adquiram habilidades, desenvolvam estratégias para lidar com suas dificuldades, avancem na aprendizagem, alcancem a autonomia. Cada um dentro do seu perfil. Alguns realmente evoluem de forma surpreendente (até mesmo para macacos velhos, como eu). Não é raro que alguns profissionais se aproveitem desses casos para promover a si mesmos ou para alardear algum tipo de tratamento, sendo que a única atitude honesta é reconhecer que a evolução resulta da soma de diversos fatores - inclusive de atributos neurológicos particulares de cada indivíduo, sobre os quais não temos muito controle.
3 - Legitima o culto à normalização. “Sair do espectro”, na maior parte das vezes, significa que a pessoa fala bem e não mais apresenta estereotipias motoras ou vocais. Ou seja, não vai mais ser apontada como “diferente” em meio a uma multidão, porque suas diferenças não são mais visíveis para os outros. Pais que fazem de tudo e tentam de tudo para normalizar seus filhos, não importa a que custo, estão passando a eles a mensagem de que suas diferenças são motivo de tristeza e vergonha. Por trás de frases como “Eu apenas não quero que ele/ela sofra”, há muito preconceito e negação, muitas vezes não reconhecidos. É como se dissessem: “Você até pode ser autista, desde que ninguém perceba”.
4 - Representa perdas práticas e reais. Não são raros os casos de filhos de pais separados, em que o pai procura um médico que ateste que seu filho saiu do espectro e entra na justiça para parar de custear terapias ou reduzir a pensão. Claro que é possível que a necessidade de terapias e suporte diminua com o tempo ou seja modificada, mas daí a suspender qualquer apoio tem uma longa distância. Essa postura dá margem para que autistas jovens, sem características visíveis, tenham ainda mais dificuldade de obter algum tipo de suporte terapêutico ou acomodações em escolas, faculdades e ambientes de trabalho.
5 – Aumenta a carga emocional para os autistas. “Mas você/ele/ela não parece autista!” a frase é infalível para aqueles que não apresentam dificuldades aparentes. Na maior parte das vezes, é proferida por puro desconhecimento do assunto. Porém, ter o diagnóstico sistematicamente questionado pode ter consequências muito negativas, como sugerir que a pessoa possa estar se aproveitando de um “rótulo” para obter vantagens ou privilégios, para justificar as próprias falhas ou peculiaridades. Para os autistas, que já lidam com uma sobrecarga enorme para sobreviver em meio aos estímulos e demandas do ambiente, ter suas dificuldades vistas como preguiça, falta de vontade, frescura, comportamento manipulador ou temperamento difícil pode ser insuportável. “Sair do espectro” pode significar não ter o reconhecimento de suas dificuldades e o direito ao suporte adequado.
Seria bom que familiares e profissionais pensassem nisso."
In https://www.facebook.com/DraRaquelDelMonde/photos/a.581671572203967/908181152886339/?type=3&theater
Falámos do passado, do presente e do futuro.
Falámos de medos, de anseios, de dores e de ânsias.
Falámos de nós e do que gostaríamos que tivesse sido diferente.
Falámos de esperança, também.
A jornalista Andreia fez um trabalho fantástico e conseguiu sintetizar tudo - ainda que pareça extenso! - porque eu sei que "falo" demais e tudo me parece importante e não queria que quem lesse ficasse com dúvidas. Percam um bocadinho e leiam.
Fui buscar as avaliações das piolhas. E tratar das matrículas.
“You can be the greatest , You can be the best” – Hall of Fame, The Script
As piolhas terminaram mais um ciclo de escolaridade. Com sucesso. No próximo ano letivo irão frequentar o 3º ciclo de escolaridade, numa escola secundária pública.
Mais um ciclo que se fechou, que se completou. E mais uma vez contra as expectativas e vozes de velhos do restelo que ouvíamos, fechámos um ciclo com sucesso. Sem mais nem menos do que com o recurso ao que a lei prevê para situações como as das piolhas.
Eu trocava já, na hora com quem quisesse, a necessidade de “ao abrigo das alíneas x y z do Decreto-Lei 54 de 6 de julho de 2018”.
Um aluno com necessidades específicas requer respostas igualmente específicas e adaptadas à sua realidade, às suas competências, entre outros, de forma a colmatar as suas dificuldades e ter sucesso.
É um direito, é o usufruir dos direitos que os vários decretos, portarias e despachos normativos – e, em última grande instância, a Constituição – preveem, sem retirar direitos a ninguém, nem usar mais do que aquilo que está previsto e salvaguardado.
Apesar das suas notas incríveis e níveis altos, quando surgia um 51%, a minha reação era a mesma “parabéns, miúda! É só um teste, não é o espelho dos teus verdadeiros conhecimentos, não mostra o trabalho/tempo/estudo que dedicaste. É positiva. Melhorará numa próxima vez.”
Não há nenhuma pílula milagrosa ou medicamento para a inteligência, o trabalho, o esforço, a dedicação.
Os pais, os professores, a lua, o sol, não têm influência nas notas a atribuir. São o que são, de acordo com os critérios aprovados. Não há notas inflacionadas nem notas mendigadas nem notas forretas.
Muitos foram os que duvidaram: saberiam um dia escrever? saberiam um dia ler sem ser por associação pictórica? conseguiriam um dia resolver os mesmos exercícios abstratos que os pares também realizavam? conseguiriam um dia andar de bicicleta? teriam um dia uma aula de educação física sem saltarem à vista comprometimentos motores e de equilíbrio? teriam um dia redução de horas de terapia de fala?
E que nos ajudaram em todo este caminho árduo. E que estarão sempre do nosso lado, mesmo que a acompanhar-nos à distância.
Como também costumo dizer muitas vezes, parafraseando a personagem Locke, da série “Perdidos”: “Não me digam o que não consigo fazer!”
Ergo o meu copo (com uma qualquer bebida lá dentro) e digo bem alto “Cheers!” porque, contra todas essas vozes, contra muitas estatísticas, com e sem apoio, com quem sempre acreditou em nós, chegámos mais longe, fomos mais.
Brindemos às piolhas, essas miúdas incríveis!
E, para terminar, pasme-se – até porque sou professora de profissão e adoro o que faço – que eu não dê a importância exacerbada às notas que seria suposto.
Que não veja a escola como único local de aprendizagem e que encare a escola como algo muito mais que aulas e avaliações. A escola quer-se um local de várias aprendizagens, a vários níveis, com vários intervenientes (professores, assistentes operacionais, assistentes técnicos, alunos, pais). A escola quer-se um lugar onde os nossos filhos estejam e sejam felizes.
Isso, para mim, vale muito muito mais do que qualquer número marcado numa qualquer pauta.
Agora, venham as férias em pleno. Para setembro, há mais.
Desde há uns anos que uso este vídeo (elaborado a partir do livro “Por quatro esquinitas de nada”, de Jerôme Ruillier, da Editorial Juventud, em algumas das minhas ações de sensibilização para o autismo, em especial, em escolas ou quando abertas à comunidade escolar.
É um vídeo fantástico que, muito sucintamente, nos remete para o “enquadrarmo-nos, fazermos parte de”. E, se nos permitirem interpretar, chegar à conclusão que, em muitos casos, o que precisamos de alterar – e, às vezes, são “umas esquinitas de nada” – é o caminho, o meio para atingir um fim, o que está ali entre um lado e o outro.
E não tenho qualquer sombra de dúvida que as piolhas – e outros tantos indivíduos como elas – são uns quadrados. Os que nos rodeiam – os amigos, a família, os professores, os técnicos, os estranhos – são uns círculos. Os círculos não precisam de mudar pois são a maioria e, tal como em situações onde a maioria prevalece, as coisas estão construídas e preparadas à medida dos círculos. O que acontece, então, quando surge um quadrado ou até um triângulo?
Estes é que têm de se adaptar. Começa, então, toda uma maratona de idas a hospitais, a escolas, a serviços de recursos para a inclusão. Uma incessante procura da melhor abordagem, da terapia que melhor resultados pode trazer, etc., para que estas figuras diferentes possam entrar naquelas áreas circulares.
Os círculos não precisam de trilhar estes caminhos e, muitos deles, nem fazem ideia de que estas maratonas existem. Não é por mal, apenas, nunca foi necessário olhar para além daquele aro em que vivem. Uma grande parte dos círculos quer estar com os quadrados e os triângulos, mas, a pressão da mudança acaba por recair nos que são diferentes. E porquê? Porque são diferentes, porque são uma minoria, porque a sociedade tal como ela é, está feita para a maioria, porque quem quiser que se adapte. Muitas vezes, nem é por mal, apenas nunca foi necessário olhar para além daquele aro em que vivem.
Por que não “cortar quatro esquinitas de nada” para que, por esse aro, por esse círculo, possam passar não só os círculos, mas também os quadrados, os triângulos, os hexágonos, e outros? Não teríamos todos a ganhar se todos fizéssemos um pequenino esforço que, em tantas situações, são “umas esquinitas de nada” mas que vêm aliviar as tais maratonas que os quadrados têm que viver? Não podemos todos fazer “umas esquinitas de nada” e vivermos de forma inclusiva sem qualquer tipo de frete?
Ser um quadrado não é fácil.
Não cabe na maioria das áreas. Nem sempre há “esquinitas de nada” que permitam a passagem. Nem sempre há círculos compreensivos do outro lado. A questão social – e, mais além, o pensamento social – é tão mais complexo do que apenas estar com alguém ou dizer um simples “bom dia”. Quando nos sentimos como um quadrado – e somos um círculo -, estamos a experienciar uma ínfima parte daquilo que sente um quadrado ou um triângulo, todos os dias, em quase todas as situações. E custa sentir este “misplacement”, este “desenquadramento”, este “no fit in”, este “não me sinto bem aqui”.
Ontem senti-me o quadrado no mundo dos círculos na reunião de entrega de avaliações das piolhas. Estamos todos perfeitamente integrados e está tudo a correr bem. As “esquinitas de nada” foram as primeiras barreiras quebradas mas o esforço que os quadrados fazem para viver num mundo de círculos é imenso. Mesmo que, do mundo dos círculos, haja reciprocidade.
Isto tudo para dizer que, independentemente, da nossa forma, temos de conseguir colocar-nos no lugar do outro e tentar perceber o esforço que foi necessário para se chegar ali, se houve ou não “esquinitas de nada” ou se esse ainda é um caminho que precisamos de desbravar, por entre maratonas.
Escrito em maio para a Up to Kids, in https://uptokids.pt/opiniao/maternidade/es-um-quadrado-ou-um-circulo/
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Este artigo acaba por ser publicado no timing certo, na Up to Kids. Apesar da situação se ter passado na semana passada. O problema é que a "situação da semana passada" repete-se todo o ano, vezes sem conta e isso desgasta, mói por dentro, dói. Dói porque nem sempre reagimos no momento oportuno ou temos as palavras certas para dizer naquele momento ou porque estamos tão assoberbadas com tudo que a ficha nem cai em condições...
A sensiblidade, a ausência de pré-julgamentos, a consciencialização tem de abarcar toda a sociedade, desde o comum ao senhor doutor. Porque, títulos e rótulos à parte, todos somos indivíduos únicos que merecem o mesmo respeito e cumprimento de direitos. Até porque, bem vistas as coisas, o único rótulo que temos e pelo qual respondemos sempre é o nosso nome.
Filha, filhas, desculpa, desculpem, ontem no gabinete do médico, não ter agido da forma mais correta e imediata… Logo eu, que sou tão explosiva e que fervo em tão pouca água. Logo eu que sou tão bem falante e que domino determinados assuntos…
Peço-vos desculpa por terem assistido às críticas de um médico desinformado e alheado do vosso historial clínico. Historial esse que está escarrapachadinho, atualizado e em local de fácil acesso, nos ficheiros clínicos do programa informático que ele estava a utilizar.
Por terem ouvido duras críticas ao vosso comportamento. Por terem visto ser-vos atribuída uma responsabilidade para a qual vocês (ainda) não estão neurologicamente maduras para executar. Por terem visto esse mesmo médico afirmar que a vossa mãe não estava a educar-vos corretamente pois vocês “que já têm 11 anos, estão claramente a gozar connosco quando fazem esse tipo de coisas”. Esse tipo de coisas a que o tal jovem médico se referia era uma coisa banal para os outros. Assoar o nariz.
Filhas, desculpem termos ido ao médico confiando que seríamos seriamente atendidas e avaliadas e termos acabado por levar um sermão sem razão nenhuma.
E pior e mais grave ainda, sem o merecermos. Desculpem só ter conseguido reagir no momento em que, ainda tonta com tamanha desconsideração, eu informo o médico que de facto, há uns anos pedimos ajuda ao nosso terapeuta para nos ensinar técnicas para que conseguíssemos assoar-vos o nariz. E o máximo que vocês conseguiram foi fungar um vaporzeco da treta para um espelho. Obviamente que naquela altura e, mesmo agora, assoar o nariz não é uma das competências pelas quais vá batalhar. A linguagem, os comportamentos sociais, as questões sensoriais preocupam-me muito muito, mas muito mais do que saberem assoar um nariz.
Desculpem só ter dito ao médico nessa altura que tu e a mana têm autismo. Assumi que, o computador e a ficha aberta à frente poderia facilmente ter visto isso.
A reação dele não foi impagável mas vetou-se ao silêncio, o que já não foi mau. Ainda assim, considero que nos deve a todas um pedido de desculpas. Até porque a sua sensibilidade depois de eu ter dito qual o vosso diagnóstico não mudou. Mexeu na tua cara sem te avisar – eu sei o quanto isso te incomoda. Não te avisou que ia ver-te os ouvidos com aquela luzinha e que isso te fez reagir por impulso. O mesmo impulso que te levou ao vómito quando te meteu a espátula na língua sem explicações. O mesmo tipo de vómito quando conseguiste, sei lá como, assoar-te um bocadinho e viste o que saiu… e eu tive que intervir e explicar que tudo isso são questões sensoriais que te fazem agir assim.
Desculpa ter-te tratado como se fosses um bebé porque um médico, uma pessoa mais habilitada do que eu para tratar de ti, não soube como fazê-lo.
Piolhas, lamento mesmo muito que tenham que passar por estas peripécias tão negativas. Lamento que mesmo estando ali à frente dos olhos de quem nos atende em letras pretas uma sigla como PEA (Perturbação do Espectro do Autismo), ainda seja necessário eu ter que falar pela vossa vez e explicar uma coisa que não deveria ser necessário explicar.
Prometo que neste campo, não volto a falhar-vos e não deixarei que vos tomem por algo que vocês, definitivamente não são. Vocês são as crianças mais doces, meigas e educadas que conheço. Tenho a certeza a absoluta que sestas são características vossas. E não há autismo, nem médico nenhum no mundo que me faça ver-vos de outra maneira.
Estamos a começar abril, o mês que a OMS escolheu para a consciencialização o autismo.
Em pleno século XXI, em plena era da informação e do fácil e rápido acesso, termos que sacar dos galardões e fazer disso uma medalha de mérito em batalha, não só dói quando o fazemos, como mostra que não podemos confiar naquele adulto seguro.
Consciencialize-se como vos manda a consciência, fale-se de autismo das formas corretas, não julguemos o que não sabemos.
O autismo não se vê mas está lá. Sente-se. Verifica-se naquelas pequenas coisas que os outros acham esquisitas ou estranhas.
Informemo-nos antes de partirmos para um ataque, seja onde for, venha ele de onde vier.
Não só em abril, mas também em maio, em julho, em setembro, em outubro, o ano todo.
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Hoje, escrevi para aqui: https://www.facebook.com/mundogoncalinho/posts/645227315913996
Há uma data que se assinala por ser o dia mundial da consciencialização do autismo. Em 2013, criei este texto em Comunicação Alternativa e Aumentativa, em formato imagem, e apercebi-me que tem corrido mundo (e, às vezes, com a identificação de quem partilha como se tivesse sido o autor! Mas que se lixe...). Fico orgulhosa por poder, de alguma forma - e esta tão simples -, contribuir para que os nossos meninos sejam vistos como crianças, com as suas especificidades. E apercebo-me de que em mais um ano que passa - ao longo de todos estes "mais um ano" - algumas atitudes mudaram mas ainda noto muita dificuldade na aceitação, dificuldades que vêm até de médicos e professores. Ainda vivemos muito (d)a ideia de que uma deficiência para ser aceite (ou ignorada ou desprezada) tem que ser obrigatoriamente física, tem que se ver, tem que se perceber marcada no corpo. Não se aceita com a mesma naturalidade que um individuo possa ter uma deficiência que não se vê no seu corpo, e quando falamos em deficiência/desordem/patologia/doença neurológica parece que embate numa barreira e acabamos por ouvir um "mas não se nota nada" ou "ninguém diria" como se uma cicatriz no tecido cerebral ou sinapses demasiado rápidas tivessem que ser visíveis a olho nu pelo mais comum do mortal, de forma a provar que aquilo que dizemos é verdade.
Mas, ao longo destes “mais um ano”, aprendi a refrear os meus ânimos e a crescer. O meu papel na consciencialização deixou de ser fisicamente ativo e in loco, e passa mais por um trabalho de retaguarda, nos bastidores e, à semelhança de anos anteriores, continuo envolvida em workshops, artigos escritos, participação em programas sobre terapias e PEA, entrevistas, participação em diversos estudos (médicos, informáticos, para aplicações), exposições, entre outros. Nunca escondi o orgulho e o prazer que é ser convidada para trabalhar com técnicos e, quando me apresentam, dizem "esta é a M., mãe de 2 meninas com PEA, não é terapeuta mas fala e pensa como um terapeuta e compreende a nossa metalinguagem”. Nunca deixei de ler informação acerca da perturbação bem como nunca deixei de me informar minimamente sobre estudos ou pesquisas credíveis mais recentes. A nossa participação em diversos estudos é algo que considero importante pois pode abrir muitas portas a diversas áreas. Já participámos em estudos acerca de realidade aumentada relacionada com o comportamento, avaliação neuro-comportamental, aplicação motora e neurológica em jogos, só para dar uns exemplos. Temos para muito breve, assim que caiam os molares das piolhas, a participação em mais um estudo (células estaminais e funcionamento neurológico em individuos com autismo). Nenhum destes estudos foi invasivo (não quero cá cobaias nem ratos de laboratório). Tudo o que fizemos foi falar do passado e do que nos levou a todos ao diagnóstico de autismo, análise do comportamento das piolhas relativamente a alguma situação/pessoa/objeto, como se comportam em vários níveis em brincadeira livre e em jogos informáticos. Os resultados podem ajudar na resolução de problemas que pessoas com determinados graus de PEA podem enfrentar no dia-a-dia, seja no presente ou no futuro, bem como na elaboração de ferramentas de trabalho que possam utilizar em diversos contextos além de permitir a comunidade científica a dar mais um passo em frente na descoberta de um tratamento eficaz ou de uma causa, quem sabe.
No entanto, consciencializar só por si não chega, é preciso aceitar que existe. E eu quero acreditar que se chega lá. Infelizmente, nem tudo é assim tão claro e positivo no caminho da consciencialização para a aceitação. Eu poderia dedicar milhentos caracteres e inúmeros posts a falar de todos os momentos mas, ainda assim, iria encontrar os haters do costume e iria ter pessoas simplesmente ignorantes... Apesar de todas as provas concretas, também já fui acusada de falar de autismo sem conhecimento de causa, de inventar o diagnóstico de PEA para justificar um comportamento desadequado, de querer enfiar autismo pelos olhos dentro de toda a gente, entre outros.
Para já, como disse algures hoje, só quero mesmo que os passeios solitários das piolhas pela escola por não entenderem nem serem entendidas pelos seus pares, deixe de ser a norma e passe a ser a exceção; que não tenham que ser elas a ter que sociabilizar quando isso lhes é tão complicado (ninguém pede a alguém cego para ver mas todos pedem a um autista para se controlar e para ir brincar com os colegas - seja lá o que isso for); que não tenhamos nem sintamos a necessidade de explicar um comportamento desadequado ou desfasado da idade porque, aos olhos de terceiros, o que se vê são duas crianças aparentemente "neurotípicas" que não parecem nada ter autismo (seja lá o que isso for, again). Precisamos todos de sensibilizar, consciencializar, fazer respeitar, levar e passar a mensagem de que estas crianças - e outros como elas -, tal como todas as outras crianças, não precisam de um rótulo para as definir, mas sim de compreensão e respeito. O autismo não as define mas faz parte delas, quer queiramos quer não. Muitos dos seus comportamentos são como são por causa do autismo e, por milhentas terapias e exercícios que façam, haverá sempre resquícios deles por lá, nem que seja num abanar de dedos em momentos de maior tensão.
Se calhar, no momento, estou a pedir coisas muito difíceis mas consciencialize-se, sensibilize-se como mandar a consciência e como se sentir no coração. Eu continuarei a fazer o que sempre fiz, em abril, em maio, em outubro, em novembro, durante todo o ano. E vestirei azul sempre e quando me apetecer, usarei peças simbólicas porque sim e sempre que me apetecer. E serei sempre a mais acérrima defensora das minhas filhas. E, como eu, há outras mães. E os pequenos gestos dos outros são importantes para nós, sem dúvida.
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A Leonor Teixeira é jornalista (numa revista conhecida da nossa praça) e tem um blog com histórias de pessoas reais num mundo real. Temos conversado um pouco e ela fez-me a entrevista que publico aqui.
Tentei ser simples, direta e sincera e, talvez, por ter tanto para dizer a entrevista tenha ficado algo longa. No entanto, a Leonor não se importou com isso e publicou mal recebeu o texto. De uma forma mais direta com pergunta-resposta, consigo alcançar outros públicos e, espero, tirar algumas dúvidas, embora, claro, seja muito sobre a nossa realidade, o "nosso" autismo... Surpreende-me sempre, pela positiva que, num mundo de interesses rápidos e imediatos, ainda haja espaço para aprender e ler sobre autismo para podermos chegar aos neurotípicos. Obrigada.
Vão ler e digam-me o que acham. Claro que, aviso desde já, que o enfoque foi mais dado à nossa realidade dentro de muitas outras realidades dentro do mesmo espectro.
https://historiasdevidaparaler.wordpress.com/2019/03/11/o-autismo-nao-e-um-bicho-papao/
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