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Sobre esta adjetivação do "especial" (que já nem se utiliza nas designações escolares pois agora diz-se, e muito bem, "necessidades específicas"), li há pouco um comentário que me deixou com as minhas veias satírica, sarcástica, cómica e arruaceira a saltitar. Qualquer coisa do género, "oh mãe, diga apenas "especial", não use a outra palavra". Bem, foi logo um fervilhar de emoção.
Vejamos várias situações.
No hospital, o médico encara os pais e abre um diagnóstico de "especial" congénita devido a uma "especial" de alguns cromossomas. É uma "especial" para o resto da vida, com os devidos tratamentos, terapias e acompanhamento e poderá ter até algum apoio estatal, como a bonificação de "especial".
Na escola, uma criança com, digamos, uma "especial" neurológica irá ter um RTP onde deverá estar referida a sua "especial" bem como as medidas aplicadas para promoção do seu sucesso em percurso académico.
No supermercado, um indivíduo com "especial", com o respetivo dístico de "especial" pode estacionar no lugar reservado a "especial" pois a indicação é clara e é um direito seu.
Na genética, é possível haver uma "especial" que surja apenas naquele indivíduo e não ser transmitida pelos seus progenitores ou ambiente. Trata-se disso mesmo, de uma anomalia genética, de uma "especial" genética.
Na segurança social, podemos, com os devidos documentos que atestem a "especial", requerer apoios e subsídios, alguns não cumulativos e nenhum uma fortuna, para auxílio em tratamentos e terapêuticas relacionadas com essa "especial".
Estou fascinada.
Acho que, a partir deste momento, vou passar a usar o adjetivo "especial" como adjetivo, verbo, nome, artigo, tudo!! Aliás, vou já - neste mesmo instante, vou só colocar este post em pausa - contactar a Associação Americana de Psiquiatria para reescrever o DSMV, banindo todas as palavras que impliquem DEFICIÊNCIA ou CONDIÇÃO ou PERTURBAÇÃO ou INCAPACIDADE (e respetivos campos semântico-lexicais) e substituindo-as por ESPECIAL e atirar tudo pelo tubo da memória, bem ao jeito orwelliano de "1984". Repare-se na categoria deste excerto: "Especial persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos (...); Especial intelectual; Especial de linguagem; Especial médica ou genética conhecida; Outras especial do neurodesenvolvimento, mental ou comportamental (...)" - Olha que coisa mai linda.
Gente, leia-se isto, devagar : "DÓ-RÉ-MI-FO-DA-SE". Não me venham com as balelas e lengalengas e mimimis e blá blá blás do "especial", tá?
"Especial" é uma cena num menu que pode ir desde um restaurante até uma casa de alterne.
"Especiais" são as jantes do meu ferro velho do aço de 1996, todas bling bling arranjadinhas.
"Especial" é o Mourinho, "the special one" (e olhem que o homem tem cá um humor e uma personalidade que cuidadinho).
"Especial" era a Força traduzida do "Five 0" com o jeitoso do McGarret.
"Especial" é a grande maioria dos agentes do FBI, NSA, NCIS, CSI e mais um milhão de siglas de organizações americanas relacionadas com polícia, segurança e intel.
"Especial" é a educação que se quer inclusiva e não chega a/para todos.
As palavras doem. Mas dói bem mais fingir que não existem e atribuir-lhes um novo epíteto cor de rosa, unicornilizado, angelical, fascinante, desofendidinho.
Não há nenhuma dessas coisas na deficiência.
Poupem-se ao ridículo, poupem-me/nos ao ridículo.
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