Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]




Anjos da guarda

por t2para4, em 18.10.17

Temos mesmo alguém que olha por nós. Já não é a primeira vez que o sinto, por muitas coisas que, inexplicavelmente acabam por se resolver da melhor maneira mas, no fatídico dia 15 de outubro, tivemos mesmo a confirmação de que algo ou alguém olha por nós.


Meio país está a arder e a nossa localidade é um verdadeiro anel de fogo. Estamos cercados por todos os lados, todas as localidades vizinhas ardem, os fogos propagaram-se e uniram-se num inferno dantesco. O marido - que trabalha a 35 km, no distrito vizinho - sai de casa com a ideia de ir por Coimbra para seguir para Viseu. Não tinham passado sequer 5 minutos da sua saída quando ele telefona a pedir-me que, sem pânicos, preparasse tudo que iríamos para casa dos meus pais que estava em perigo. Os acessos estavam já todos cortados e não saía ninguém.
Com calma, lá meti num saco reutilizável - quem é que se lembra de malas e troleis numa altura destas - umas quantas peças de roupa, medicamentos, tablets para as piolhas ocuparem o tempo no caso de faltar a luz e evitar o pânico e carregadores de telemóvel. Lá seguimos para casa dos avós. Explicámos às piolhas que o fogo estava perto mas que iria correr tudo bem porque o vento estava contra o fogo e nós estaríamos em segurança. Em casa, fechámos todos os estoros (de alumínio), espalhámos as mangueiras e deixámos pás e enxadas à mão. Preparámos também velas e isqueiros e lanternas para o caso de corte de eletricidade. Repetimos vezes sem conta que todos os nossos terrenos estavam limpos e seguros. Metemos as piolhas dentro de casa com a avó, na segurança e no conforto da casa e viemos para a rua vigiar, aguardar e tentar perceber de que lado soprava o vento, para que lado se dirigia o fogo e viamos labaredas e bolas de fogo da altura de prédios a poucos km e não tínhamos forças nem palavras para descrever.

Entretanto, pelas redes sociais, íamos sabendo como estavam as correr as coisas nas aldeias e vilas vizinhas e estava tudo muito muito mau... Amigos a viver longe em total pânico e ansiedade porque havia fogo nos quintais das casas dos pais, familiares que passaram a noite em abrigos improvisados por não conseguirem regressar a casa, colegas que perderam casas e familaires ou conhecidos, pessoas com quem convivemos diariamente a perder toda uma vida de trabalho e em perigo... É indescritível... E a sensação de impotência é assombrosa.

 

Tentámos manter as rotinas mas era quase impossível. Ninguém jantou nada de jeito, as piolhas deitaram-se mais tarde e foi dificil adormecer porque estavam excitadíssimas e acabei por ter de avisar a diretora de turma da situação pois havia teste no dia seguinte. Até os gatos sabiam que algo estava errado e mantiveram-se sempre por perto, sem irem passear como habitualmente fazem. Quando elas conseguiram adormecer, as labaredas e as nuvens de fumo eram imensas e pareciam mais próximas. Não dormimos. Dormitámos no sofá e nas cadeiras da cozinha, vestidos e calçados, alerta a qualquer som. A aguardada chuva estava longe de cair. Pela madrugada, deu-nos a sensação de que o fogo recuara e subira para outras encostas. E foi assim mesmo, foi consumir por inteiro localidades vizinhas.

 

No meio de tanta espera angustiante, soubemos, nos intermeios dos cortes de rede de telecomunicações que o posto de trabalho do marido ardera. Não se sabia nada dos funcionários. Foi um pânico e uma aflição, por todos os motivos. Entre tentar ligar para as chefias - que estavam a caminho mas presas nas estradas entretanto cortadas - e para os colegas, não se conseguia saber de nada pois a rede ia e vinha e rede fixa já nem havia - e ainda não há. Poucas horas depois lá soubemos que todos os trabalhadores se tinham abrigado no local onde o marido trabalha e que essa estrutura resistira ao fogo, que estavam todos bem. Não há palavras para o alívio mas vem logo a apreensão e as perguntas "e agora?"... Mas, no entanto, havia algo que ainda nos dizia que, ainda assim grave, não seria tão grave como pensado. E não. Felizmente aquele local dá para reconstruir e todos esses postos de trabalho serão mantidos.


E, depois dos ânimos acalmarem, depois de um dia, uma noite e uma manhã de vigilância e alerta, caímos em nós e nem queremos acreditar que possa ser coincidência a estrada estar cortada naquele momento e obrigar o marido a regressar a casa, as labaredas que se viam nunca terem lançado projeções sobre os nossos pertences e a sala de trabalho do marido, a 35 km de distância, ter sido a única estrutura que resistiu ao fogo sem partir um único vidro ou derreter uma única parte, rodeada por fogo como esteve. Temos a certeza de que algo ou alguém olha por nós e nos protege, nos une e nos impele a estarmos juntos nestas adversidades e sobreviver às dificuldades.

 

Quanto às piolhas, a quem foi, desta vez, impossível de esconder as notícias e as imagens, não sabemos como explicar-lhes o que se passa porque nem nós sabemos. Não percebemos se elas terão entendido o alcance de tudo isto mas vêm os sinais: a devastação, o cheiro horrível a queimado por todo o lado, a bandeira a meia haste, as conversas de todos com todos, os telefonemas ansiosos que vamos fazendo (e recebendo) para amigos e conhecidos para saber como estão, os pais em casa porque os acessos para irem trabalhar estão cortados ou fechados. E elas perguntam se foi como em junho, igual a junho...
Os avós têm 63. Já passaram por incêndios de grandes dimensões e guardam memórias disso mas nunca viram algo da dimensao deste, nunca foi necessário ter tudo a postos para qualquer eventualidade, nunca rezaram por coisas simples como não haver corte de água ou luz e nunca nenhum de nós viu tamanha devastação.

 

Hoje regressamos ao trabalho e ainda não há comunicações. O caminho é todo feito em silêncio. Ainda se vê fumegar e, alguns postes de telefone, ainda ardem. São km e km a perder de vista em tons de castanho e preto. As copas das árvores assaram e secaram não do fogo em si mas do calor avassalador. O cheiro entranha-se em todo o lado. É triste e doloroso. Perdemos a nossa floresta, parte da nossa serra, os nossos paraísos.

 

Foi Pedrogão 4 meses depois, repetido e aumentado de forma exponencial. Não há explicação. Só devastação e dor.

 

 

 

 

 

---------------- Estamos também no Facebook --------------------

publicado às 11:03

Direitos Reservados

Algumas das fotos publicadas neste blog são retiradas da Internet, tendo assim os seus Direitos Reservados. Se o autor de alguma delas discordar da sua publicação, por favor informe que de imediato será retirada. Obrigada. Os artigos, notícias e eventos divulgados neste blog tem carácter meramente informativo. Não existe qualquer pretensão da parte deste blog de fornecer aconselhamento ou orientação médica, diagnóstico ou indicar tratamentos ou metodologias preferenciais.



Mais sobre mim

foto do autor







Parceiros


Visitas


Copyright

É proibida a reprodução parcial/total de textos deste blog, sem a indicação expressa da autoria e proveniência. Todas as imagens aqui visualizadas são retiradas da internet, com a excepção das identificadas www.t2para4.com/t2para4. Do mesmo modo, este blog faz por respeitar os direitos de autor, mas em caso de violação dos mesmos agradeço ser notificada.

Translate this page


Mensagens