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Temos mesmo alguém que olha por nós. Já não é a primeira vez que o sinto, por muitas coisas que, inexplicavelmente acabam por se resolver da melhor maneira mas, no fatídico dia 15 de outubro, tivemos mesmo a confirmação de que algo ou alguém olha por nós.
Meio país está a arder e a nossa localidade é um verdadeiro anel de fogo. Estamos cercados por todos os lados, todas as localidades vizinhas ardem, os fogos propagaram-se e uniram-se num inferno dantesco. O marido - que trabalha a 35 km, no distrito vizinho - sai de casa com a ideia de ir por Coimbra para seguir para Viseu. Não tinham passado sequer 5 minutos da sua saída quando ele telefona a pedir-me que, sem pânicos, preparasse tudo que iríamos para casa dos meus pais que estava em perigo. Os acessos estavam já todos cortados e não saía ninguém.
Com calma, lá meti num saco reutilizável - quem é que se lembra de malas e troleis numa altura destas - umas quantas peças de roupa, medicamentos, tablets para as piolhas ocuparem o tempo no caso de faltar a luz e evitar o pânico e carregadores de telemóvel. Lá seguimos para casa dos avós. Explicámos às piolhas que o fogo estava perto mas que iria correr tudo bem porque o vento estava contra o fogo e nós estaríamos em segurança. Em casa, fechámos todos os estoros (de alumínio), espalhámos as mangueiras e deixámos pás e enxadas à mão. Preparámos também velas e isqueiros e lanternas para o caso de corte de eletricidade. Repetimos vezes sem conta que todos os nossos terrenos estavam limpos e seguros. Metemos as piolhas dentro de casa com a avó, na segurança e no conforto da casa e viemos para a rua vigiar, aguardar e tentar perceber de que lado soprava o vento, para que lado se dirigia o fogo e viamos labaredas e bolas de fogo da altura de prédios a poucos km e não tínhamos forças nem palavras para descrever.
Entretanto, pelas redes sociais, íamos sabendo como estavam as correr as coisas nas aldeias e vilas vizinhas e estava tudo muito muito mau... Amigos a viver longe em total pânico e ansiedade porque havia fogo nos quintais das casas dos pais, familiares que passaram a noite em abrigos improvisados por não conseguirem regressar a casa, colegas que perderam casas e familaires ou conhecidos, pessoas com quem convivemos diariamente a perder toda uma vida de trabalho e em perigo... É indescritível... E a sensação de impotência é assombrosa.
Tentámos manter as rotinas mas era quase impossível. Ninguém jantou nada de jeito, as piolhas deitaram-se mais tarde e foi dificil adormecer porque estavam excitadíssimas e acabei por ter de avisar a diretora de turma da situação pois havia teste no dia seguinte. Até os gatos sabiam que algo estava errado e mantiveram-se sempre por perto, sem irem passear como habitualmente fazem. Quando elas conseguiram adormecer, as labaredas e as nuvens de fumo eram imensas e pareciam mais próximas. Não dormimos. Dormitámos no sofá e nas cadeiras da cozinha, vestidos e calçados, alerta a qualquer som. A aguardada chuva estava longe de cair. Pela madrugada, deu-nos a sensação de que o fogo recuara e subira para outras encostas. E foi assim mesmo, foi consumir por inteiro localidades vizinhas.
No meio de tanta espera angustiante, soubemos, nos intermeios dos cortes de rede de telecomunicações que o posto de trabalho do marido ardera. Não se sabia nada dos funcionários. Foi um pânico e uma aflição, por todos os motivos. Entre tentar ligar para as chefias - que estavam a caminho mas presas nas estradas entretanto cortadas - e para os colegas, não se conseguia saber de nada pois a rede ia e vinha e rede fixa já nem havia - e ainda não há. Poucas horas depois lá soubemos que todos os trabalhadores se tinham abrigado no local onde o marido trabalha e que essa estrutura resistira ao fogo, que estavam todos bem. Não há palavras para o alívio mas vem logo a apreensão e as perguntas "e agora?"... Mas, no entanto, havia algo que ainda nos dizia que, ainda assim grave, não seria tão grave como pensado. E não. Felizmente aquele local dá para reconstruir e todos esses postos de trabalho serão mantidos.
E, depois dos ânimos acalmarem, depois de um dia, uma noite e uma manhã de vigilância e alerta, caímos em nós e nem queremos acreditar que possa ser coincidência a estrada estar cortada naquele momento e obrigar o marido a regressar a casa, as labaredas que se viam nunca terem lançado projeções sobre os nossos pertences e a sala de trabalho do marido, a 35 km de distância, ter sido a única estrutura que resistiu ao fogo sem partir um único vidro ou derreter uma única parte, rodeada por fogo como esteve. Temos a certeza de que algo ou alguém olha por nós e nos protege, nos une e nos impele a estarmos juntos nestas adversidades e sobreviver às dificuldades.
Quanto às piolhas, a quem foi, desta vez, impossível de esconder as notícias e as imagens, não sabemos como explicar-lhes o que se passa porque nem nós sabemos. Não percebemos se elas terão entendido o alcance de tudo isto mas vêm os sinais: a devastação, o cheiro horrível a queimado por todo o lado, a bandeira a meia haste, as conversas de todos com todos, os telefonemas ansiosos que vamos fazendo (e recebendo) para amigos e conhecidos para saber como estão, os pais em casa porque os acessos para irem trabalhar estão cortados ou fechados. E elas perguntam se foi como em junho, igual a junho...
Os avós têm 63. Já passaram por incêndios de grandes dimensões e guardam memórias disso mas nunca viram algo da dimensao deste, nunca foi necessário ter tudo a postos para qualquer eventualidade, nunca rezaram por coisas simples como não haver corte de água ou luz e nunca nenhum de nós viu tamanha devastação.
Hoje regressamos ao trabalho e ainda não há comunicações. O caminho é todo feito em silêncio. Ainda se vê fumegar e, alguns postes de telefone, ainda ardem. São km e km a perder de vista em tons de castanho e preto. As copas das árvores assaram e secaram não do fogo em si mas do calor avassalador. O cheiro entranha-se em todo o lado. É triste e doloroso. Perdemos a nossa floresta, parte da nossa serra, os nossos paraísos.
Foi Pedrogão 4 meses depois, repetido e aumentado de forma exponencial. Não há explicação. Só devastação e dor.
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