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O autismo personificou-se nas nossas duas filhas, gémeas monozigóticas. Com o passar do tempo, com o meu (e delas) amadurecimento, o autismo está apenas personificado q.b.
Para nós, (con)viver com o autismo é não o aceitar de todo, não permitir que ele roube às minhas filhas - a nós família - mais do que já roubou, não abdicar de lhes proporcionar a felicidade que merecem. E, contrapartida, é como ver o mundo através de uma lente alternativa, é um processo constante e infinito de aprendizagem. Tivemos (e ainda temos) que aprender a ver o que nos rodeia de forma diferente - não errada, não estranha, não especial, apenas e somente diferente - e a não tomar tudo como dado adquirido ou como garantido. Nada nos é garantido. O mais pequeno esforço na conquista de uma vitória (que pode ser tão simplesmente a vocalização de um som) é um excelente motivo de comemoração. Passámos, assim, a comemorar todas as pequenas coisas que são absurdas e garantidas aos olhos dos outros.
Como pais, tornámos experts em imensas áreas. De repente, num curto espaço de tempo, tornámo-nos entendidos em legislação e burocracia escolar, dominamos os acrónimos/siglas/abreviaturas da medicina relativas ao autismo, identificamos questões comportamentais em segundos, tratamos as coisas pelos nomes corretos (handflapping, parassónias, estereotipias, risperidona, etc. é só dizer!), lemos quantidades absurdas de estudos/ensaios/textos/pareceres/etc sobre o autismo em si mas também sobre fármacos/terapias/apoios/etc., aprendemos a reproduzir os exercícios de terapia da fala e adquirimos a capacidade de transformar a nossa casa num gigantesco ginásio de terapia ocupacional (até certa idade), fazemos uma gestão financeira digna de um corretor de Wall Street, adiamos carreiras por um hoje mais certo e presente em tudo (todos os momentos, todas as terapias, todas as consultas, todos os despistes, todos os exames e avaliações), lemos mais um pouco e ficamos peritos em processamento auditivo/linguístico/exercícios oro-motores/consciência fonológica.
Quando saímos todo um processo de aprendizagem implícita é colocado em marcha: treino de competências sociais, autorregulação comportamental e sensorial, jogo simbólico, alternância de turnos em diálogos, interpretação de expressões faciais de terceiros, decisão e escolha, etc etc etc. "Never a dull moment", como dizemos entre nós, mães e pais de crianças com autismo.
Apesar de nem sempre nos apercebermos, fomos e somos capazes de uma força imensa que nos impele para lutar sempre e mais pelas nossas filhas. São, sem dúvida alguma, a maior razão e a maior prova de que é possível seguir em frente e acreditar num amanhã melhor. Mesmo que isso implique uma montanha-russa de sentimentos, emoções, incertezas.
Temos medo do futuro, da sociedade atual, nem sempre cremos que seja justo retirá-las do mundo estruturado e isolado delas para se imiscuírem no nosso caos, mas sabemos que, por muito mínimas que sejam, as suas evoluções mostram que é possível viver entre dois mundos.
E até nisso nos tornámos peritos.
Vezes dois, sempre vezes dois.
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