Gosto da Astrid. Mesmo um pouco esterotipada - não confundir com estereotipia, ok?
A série "Astrid et Raphaëlle" tem como protagonistas principais duas mulheres. Uma é neurotípica, a outra é autista.
A minha experiência com séries com personagens autistas não é a melhor mas decidi dar o benefício da dúvida a esta por 3 motivos: é uma série criminal, é em francês padrão (as saudades que eu tenho de francês...) e tem uma mulher como autista. Não me arrependi. Vimos o episódio em família e até o marido, que costuma ser cético nestas coisas, gostou de alguns pontos. E dá perfeitamente para falar da vida que Astrid, a arquivista com autismo, leva no seu dia-a-dia com as piolhas e conversar sobre os aspetos mais marcantes: o porquê de ir tomar um copo/café, o desatino e a ansiedade que surgem num imprevisto, o ter a vida regrada ao minuto quando se trata do tempo do interesse, etc.
Foi a primeira vez que vi a utilização correta do termo "neurotípico" (e foi muito engraçado explicar isto às piolhas. "Ah, quer dizer que são normais?" Não, quer dizer que não têm nenhuma neurodivergência, ou seja, nenhum tipo de diagnóstico relacionado com questões neurológicas; basicamente é uma espécie de diagnóstico para todos esses).
Impressionou-me, muito, pela positiva, a existência de grupos de apoio a autistas adultos que trabalham. Faz-me acreditar num mundo em mudança para melhor. Apesar das queixas dadas por esses adultos me porem o coração pequeno... Uma das queixas era aquela que sentimos diariamente aqui: nós é que temos de nos adaptar a tudo e todos, como se tivéssemos de pedir por favor - ninguém pede a um surdo que comece a ouvir.
Há cenas exageradas - como em tudo o que é ficção; há momentos esquisitos até para um autista - como em tudo o que é ficção. Mas há ali comportamentos reais: Astrid tem um emprego devido a um favor ao pai (quantos casos deste género temos por cá...); trabalha num local sossegado e tranquilo, onde pode estar una com os seus interesses quase obsessivos e longe de estímulos que a levem a sobrecarga sensorial; teve uma pequena crise de sobrecarga sensorial e teve de se afastar dos gatilhos; tem uma rigidez tremenda no que concerne horários; debita factos; depende de rotinas para se estruturar e não lida nada nada bem com a imprevisibilidade; é maltratada pelo superior que a humilha; é chamada de maluca e esquisita e estranha por montes de gente.
Assim, de repente, e sem me desviar muito, são comportamentos que as piolhas também revelam. Não com tanta rigidez nem com tantas estereotipias tão visíveis pois elas estão mais funcionais, mas, ainda assim, com algumas destas "estranhezas", "maluquices" e "esquisitices". E tal como a Raphaëlle disse a um palerma que a chamou de maluca, nós também ensinamos as piolhas a nunca se deixarem insultar e a mandar um belo "Casse-toi!" (para sermos simpáticos e não recorrer a outra linguística).
Ninguém incomoda o tipo que trabalha no escritório e tem uma coleção de post-its coloridos alinhados de tons quentes para frios. Como não tem diagnóstico, tudo tranquilo. Mas todos se acham no direito de opinar sobre alguém que não tem a mínima noção/paciência/jeito para socializar à hora do cafezinho, basta ter um diagnóstico qualquer. Gente, diagnósticos servem para abrir portas, derrubar barreiras, procurar aceitação e respeito, ok? Não é para se fazer o exato oposto!
Either way, daqui retiramos aprendizagens. E isso, para já, com ou sem série, ajuda-me. E a Astrid, ainda que possa estar estereotipada - porque está - ajuda a trabalhar as questões sociais cá em casa com tudo o que envolve, desde a noção de autismo (não é doença, pode surgir um diagnóstico tardio, pode haver interesses díspares, podem ser funcionais ou não) à relação com o mundo (autonomia, socialização, trabalho, gestão financeira, etc.).
Esta é a minha "review" do momento, chamemos-lhe assim. Quem não gosta, não vê. Tout simplement.