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Primeiro que tudo, deixa-me tratar-te por "tu", já que, a partir do momento em que te achas em condições de opinar sobre o que quer que seja da minha vida ou, mais especificamente, da das minhas filhas, sem nos conheceres de lado nenhum, pressupõe um nível de familiaridade que, na nossa língua, se traduz num tratamento pela 2ª pessoa do singular.
Sabes, não sou a mãe perfeita. Não sou a mãe zen. Não sou a mãe devoradora de livros e manuais e estudos e artigos escritos pelo Dr. A em articulação com a Universidade C em compadrio com o dr. B, vendido pela editora X. Não sou a mãe imaculadamente bem vestida com criancinhas tratadas por "você" com nomes coquettes. Não sou a mãe exemplo.
Vou dizer-te que tipo de mãe sou: sou a mãe que consigo ser com todas as minhas forças, dedicação, paixão, amor, que cada célula viva ou morta do meu corpo, da minha mente, da minha alma possa transmitir. Sou a mãe que se esforça para poder proporcionar o melhor da vida às suas filhas - e isso não implica dinheiro ou bens! quero apenas que sejam felizes, capazes, autónomas, resistentes, resilientes, justas. Sou a mãe que não desiste mesmo quando tudo indica que é melhor parar por ali ou algum iluminado diz que "se calhar, não será capaz de..." ou "é melhor evitar...". Sou a mãe que lhes saiu na rifa, com tudo o que de bom e de mau há nisso. Sou mãe até ao âmago, sem tirar nem pôr. Sou a mãe devoradora de livros, artigos dos Dr. X, Y e Z numa determinada especialidade, da qual já te falarei.
Portanto, quando passas por mim e estou, como habitualmente, acompanhada pelas minhas filhas e me ouves falar com elas de forma autoritária, quase à Cesar do "Dog Whisperer", e paras propositadamente, fingindo-te de ocupado, para ouvir tal sermão, não sabes nem sonhas nem tens a mínima ideia do que originou essa situação e, sem esse sermão, que consequência poderá advir daí. Falta-te o contexto, ou seja, tudo o que envolve aquele momento, todo o seu background, para que possas compreender, em pleno e no seu todo, e assimilar aquilo que ouves. Mas, como te falta essa base, aquilo que fazes é ouvir, julgar, tomar notas e, muitas das vezes, abrir essa tua boca de onde brotam os mais absurdos disparates ou, mais grave ainda, frases feitas e clichés pseudodidáticos em tom de brincadeira, como se, naquele momento, eu estivesse louca de vontade de me atirar ao chão agarrada à barriga de tanto de rir.
Quando assistes a uma birra de miúdas de 8 anos que choram e berram e gritam por um motivo, para ti, tão irrisório, como não terem tido um brinquedo ou um bolo que queriam, não assumas o que te vem de imediato à cabeça e não a acenes como se tivesses Parkinson. É feio e fica-te mal.
Vou explicar-te uma coisa: cada indivíduo, desde o seu nascimento, tem mecanismos de regulação internos que o auxiliam a acalmar-se, a combater a ansiedade, a reconhecer padrões neurológicos, a regular a sua emoção, os seus estados de agitação e vigília. Alguns individuos têm essa função - chamemos-lhe assim - tão bem conectada que são pessoas extremamente pacíficas, serenas e calmas; outras têm mais dificuldade em conseguir esse tipo de regulação e podem até mostrar alguma agitação, ansiedade, ter um ou outro vício como roer as unhas ou fumar; outras não possuem reguladores tão bem interligados e é aí que se inserem as minhas filhas bem como tantas outras crianças, jovens e adultos. São individuos que têm Autismo ou uma Perturbação do Espectro do Autismo. E, além de muitas outras coisas associadas, uma das suas maiores e mais evidentes dificuldades em todos eles é alcançar um nível de regulação saudável e funcional e manter esse nível. Consegues compreender esta simples explicação?
Aquele "espetáculo", como lhe chamas em surdina soprada de modo a que eu ouça, é um efeito avassalador e desgastante da ausência e dificuldade de autorregulação para elas e para mim, a mãe. E para o pai também, porque, sabes, apesar de termos muitos homens armados em machos latinos por cá, os verdadeiros pais sofrem com e pelos filhos. É-lhes, a elas, complicado entender e assimilar de uma só vez a informação de que há coisas que nos escapam ao controlo e que não podemos nem devemos nem é saudável fazermos as mesmas coisas sempre da mesma maneira, porque o mundo e a sociedade não funcionam assim. Apesar de elas não gostarem nem saberem lidar com isso, eu - a tal mãe que criticas - tenho que as preparar para esse mundo, tenho que lhes dizer "não" à rotina do donuts com chocolate de cada vez que vamos ao Lidl e não ao mini-brinquedo caríssimo que só existe naquela determinada loja e é sempre ali que se compra, por hábito. E, deixa-me dizer-te que, muitas vezes, basta uma vez para se tornar um hábito - é um bocado como fumar, percebes?
Vês-me de cara fechada e de nariz arrebitado, com ar arrogante até, a sair do shopping ou do hipermercado em passo certo com duas crianças a gritar desalmadamente. Às vezes, vais ouvir-me zangar-me com elas; outras vezes, vais ver-me ignorá-las enquanto elas gritam cada vez mais. O que tu não vês é as lágrimas a subirem-me aos olhos, os meus ouvidos a apanharem todas as vossas bocas e indiretas, os gestos dos vossos filhos a apontar descaradamente para as minhas filhas e a terem comportamentos piores que o delas, o meu olhar periférico a captar todas as vossas expressões faciais - que elas não compreendem nem interpretam (também é uma das coisas inerentes ao autismo) mas eu interpreto muitíssimo bem. O que tu não vês nem ouves, sou eu, com a calma que me é possível, colocá-las no carro e ensiná-las, ainda que entre berros e uma agitação motora descomunal e esperneares impossíveis que, muitas vezes, me magoam fisicamente, que a vida é feita de ações e que cada ação tem consequências e que, por vezes, essas consequências podem ser um castigo por terem sido incapazes de se controlar um bocadinho mais ou não terem pedido para sair quando sentiam uma birra a chegar ou por terem cedido à ansiedade quando até já aprenderam uma ou outra estratégia para a controlar (imagina-te a treinar uma equipa de futsal, porque talvez 11 jogadores seja demais para ti, e a formação que treinaste com a equipa desaparece em campo em pleno jogo e, por muito que grites e ralhes e ameaces nada volta ao controlo. A culpa não foi tua mas sim da vespa que entrou/do chão demasiado encerado/do capitão de equipa que naquele dia se zangou com o seu amigo e quer dar-lhe uma abada). O que tu não vês - porque não te interessa nem estás lá para ver - é o ar de cansaço que se abate subitamente nessa mãe e nessas crianças. Que, segundos depois, já reguladas devido ao ambiente familiar e semiobscuro do carro e (aparente) calma da mãe, já se parecem com as demais crianças daquela idade.
Quando me apontas o dedo, quando comentas algo com a pessoa que vai contigo, quando permites que o teu filho mais velho faça cenas do género tapar os ouvidos e dizer que é pior que as birras do irmão mais novo, odeio-te. E penso que te faria bem passares pelo que eu passo. Afinal, tens filhos neurotípicos (é o rótulo que damos aos "normais") e eu não.
Mas, no segundo seguinte, ocorre-me que não é esta a mensagem que eu quero transmitir ao universo: desejo que nunca venhas a conhecer a dor que é querer ajudar um filho e não saber nem perceber como e, em 90% das vezes, ires às adivinhas; não te odeio, lamento-te... lamento que não tenhas mais discernimento para pensar além do que os teus olhos vês; e fico feliz por me dares a oportunidade de fazer, eu própria, a minha comparação com os teus filhos: as minhas filhas com autismo são bem educadas. Não posso nem quero desperdiçar a minha energia contigo porque, talvez já tenhas reparado, eu preciso dela para me dedicar ao que é realmente importante para mim - as minhas filhas. E, felizmente, nesse campo, o treinador sou eu e tu e as tuas opiniões descontextualizdas e inconscientes valem zero.
Antes de terminar, deixa-me só dizer-te mais umas coisas: tolerância, inclusão, sociabilização - não gosto do teu perfume/aspeto de tia de cascais/de gordo desleixado/dos teus filhos a apontarem dedos mas tolero e não faço nem digo nada que te possa magoar, não são contas do meu rosário - ajudo-te se vir que precisas; não me agrada mesmo nada que te sentes na mesa ao lado e metas conversa comigo ou com as minhas filhas, mas somos todos diferentes e, apesar do teu olhar estrábico ou de seres obeso, eu não te rejeito pelo teu aspeto nem pela tua deficiência, acolho-te e incluo-te naquele meu espaço, dou aulas aos teus filhos sem nunca deixar que as suas ações interfiram com o meu profissionalismo; mesmo que não te agrade - e, acredita, é mútuo - levares comigo e com as minhas filhas, eu não vou desistir de sair com elas, de tomar café com elas, de ir às compras com elas, de as ensinar a atravessar a estrada porque sociabilizar é também aprender a conviver em sociedade e ser-se tolerante e inclusivo. Reparaste como estas coisas funcionam como um ciclo?
Observa em vez de veres apenas. Todos nós nascemos com um cérebro: usa-o, é uma aplicação biológica gratuita! E, mais importante, arranja uma vida em vez de te preocupares com a minha.
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