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A maternidade custa muito e dá muito trabalho. Ser-se mãe ou pai de crianças com necessidades específicas acresce um outro nível de trabalho ao já existente. Não é à toa que, muitos estudos acabam por encontrar níveis de stress equivalentes aos do Síndroma de Stress Pós-Traumático ( https://www.ptsduk.org/causes-of-ptsd-caring-for-a-child-with-a-complex-medical-condition-or-disability/ ou https://encyclopedia.pub/entry/2120 por exemplo), em cuidadores de crianças com algum tipo de deficiência. Viver em família é difícil; viver em comunidade, então, é um desafio constante.
O nosso diagnóstico de autismo é aberto a todos, ou seja, nunca foi segredo, as próprias autistas sabem o que lhes calhou no jogo da lotaria genética/epigenética/ambiental, a escola tem acesso aos relatórios em como técnicos e outros que deles necessitem para um trabalho apropriado. Nunca omitimos informações alusivas ao autismo, sempre seguimos as indicações de tratamento e acompanhamento, fizemos os testes necessários para despiste genético (dentro do que a medicina, na altura, dispunha - agora não faz sentido repetir, anexando mais marcadores, pois sabemos que será genético multiplex, visto haver mais casos na família), sempre proporcionámos as adequações necessárias para que as piolhas pudessem chegar mais longe (psicomotricidade, natação, aulas de música, etc.), sempre viajámos com elas, propusemos vivências que permitissem e potenciassem o seu desenvolvimento.
E, desde bebés, mesmo sem sabermos que havia ali uma perturbação do desenvolvimento, elas acompanhavam-nos para todo o lado. E, apesar de, neste momento, já estarmos num nível muito à frente, ainda o fazemos, porque sim, porque elas gostam e querem, porque é assim que fazemos. Quantas vezes, depois de percorrermos centenas de km e de termos feito a preparação, mostrado o itinerário, falado do que faríamos, havia um ou outro imprevisto e lá se ia a nossa viagem pelo cano... Vinha o descontrolo, a ansiedade, as birras, o choro, a negociação, a chantagem, a espiral de desespero e as ameaças "nunca mais voltamos a sair juntos" ou "não volto a sair com vocês"... E, na próxima vez, fazíamos tudo de novo e lá tentávamos mais uma vez, sempre a insistir, sempre a levá-las, sempre a arriscar.
Hoje, ainda que a ansiedade do desconhecido tente espreitar, já não impera e conseguimos ir cada vez mais longe e até alterar planos no último instante ou já na viagem e elas lidam muito bem com isso, desde que bem explicado. Conseguem sair comigo e ir a um restaurante, a um café, a uma festa e conviver (à sua maneira) com quem está presente e tenho de ser eu a "empurrá-las" para irem e arriscarem a estar sem mim ali ao lado, podem estar sozinhas, numa situação social.
Era sobejamente criticada por as levar para todo o lado comigo, às vezes, ainda no carrinho porque fugiam e não tinham noção do perigo, ou bem agarradas à minha mão, uma de cada lado: às compras, fazer pagamentos, a repartições públicas, a reuniões, a aviar recados, etc. Os avós ficavam com elas, claro, sempre que necessário, mas também era preciso este treino de competências e que deu frutos: hoje conseguem gerir os estímulos e tolerar muitas situações, sabem fazer alguns exercícios simples de antecipação (jogo da mente) e até serem autónomas em muitas decisões e tarefas. O esforço, o sacríficio por que passámos resultou e as bocas que nos mandaram resvalaram na couraça da nossa indiferença e veem-se hoje desfeitas. Nunca tive vergonha das minhas filhas - pasme-se, nunca tive vergonha do autismo. Tenho é vergonha de quem foi ignorante a ponto de sugerir isolamento e de se meter onde não era chamado.
O caminho que percorremos até agora foi feito com curvas e contracurvas, com muito custo, muito trabalho, a desbravar acessos, a reivindicar melhorias, a fazê-lo com as nossas próprias mãos (tantas vezes, sozinhos). Não me arrependo nem um minuto do que fizemos até agora. E não pararei nunca, exceto se elas mo pedirem. Até lá, seremos sempre a retaguarda delas, a defesa delas, o resguardo delas. E não as esconderemos do mundo. O mundo também é delas.
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Por que (ainda) é tão difícil mudar mentalidades, chegar a todos, aceitar a diferença e a diversidade (a vários níveis, seja diversidade física, neurológica, de género, sexual, etc.)? Por que ainda se fala em surdina daquela rapariga que coxeia porque tem paralisia cerebral ou daquele rapaz com uma tatuagem grande? Por que se critica o tamanho daquela saia ou as calças rasgadas no joelho? Por que se ponta o dedo com esgar de coitadinhice ao indivíduo com deficiência? Por que se critica uma mulher por ganhar muito dinheiro e ter uma carreira mas um homem não? Por que se empurram todas as obrigações parentais para a mãe e se desculpabiliza o pai? Por que é tão difícil falar (aceitar, até!) da diversidade?
Porque todo um passado fechado, pequeno, tacanho e atípico ainda nos persegue e porque, infelizmente, ainda temos pessoas que defendem determinados pontos de vista que abominam toda uma alteração social e, ali ao lado, a inclusão como ela deveria ser. É generalista, sim, mas é verdade.
Uma das coisas que gosto de fazer quando leio algum artigo é ler os comentários. Aprende-se muito com os comentários, acreditem. Faço parte de alguns grupos que mostram o que foi Portugal no passado e a aprendizagem que dali retiramos não tem valor. É História no seu verdadeiro sentido pois inclui também a história pessoal de quem publica. Mas, alguns comentários - a grande maioria dos comentários - é de levar as mãos à cabeça.
Uma grande percentagem aborda o tradicional cliché "éramos tão felizes com pouco" ou "éramos tão felizes e não sabíamos", geralmente associado a fotografias a preto e branco de pessoas do povo, descalças a ir buscar água à fonte ou de crianças descalças e esfarrapadas na escola. Em nenhuma daquelas fotos se vê um sorriso. Ou um pé calçado. Viver em sub-condições, sem wc próprio, sem água canalizada, sem eletricidade, sem comida, sem planeamento familiar, com violência educacional e doméstica devia ser uma felicidade do caraças. E, muitos - demasiados!!! - são defensores que sopas de cavalo cansado nunca fizeram mal a ninguém. Realmente, nada como uma vinhaça materlada com pão de uma semana para dar um boost de energia num cérebro infantil em desenvolvimento, logo pela manhã... Não admira que as taxas de mortalidade e de desenvolvimento infantil fossem assustadoras e a nossa população fosse mais baixa, mais magra e menos desenvolvida que as demais.
Alguns comentadores - mais jovens que eu e eu já faço 40 daqui a uns meses - conseguem até encontrar justificação para episódios de violência doméstica e de crítica para a emancipação feminina. Não resisto a partilhar aqui, ipsis verbis, a resposta dada por uma mulher, mais jovem que eu, sobre este assunto: "Não me parece que o mundo esteja melhor pelo facto das mulheres terem abandonado o cuidado do lar filhos e marido para se dedicar em a outras coisas..." porque, como toda a gente sabe, o papel da mulher - esse ser inferior e sugestionável, inútil até, à sociedade e que em nada contribui para a evolução humana - é no "lar", a cuidar do marido e dos filhos. Sim, não há opção: é para ter marido e filhos, independentemente da sua vontade. Há que ser submissa e obediente à figura masculina.
Outros comentários há que abordam, então, a forma como as mulheres se vestem hoje: sem brio, sem qualidade, sem simplicidade, sem beleza. Porque antigamente é que era bom. Ah, e éramos todos felizes, mesmo descalços e esfarrapados, de luto carregado mesmo na flor da idade.
Agora, façamos aqui um exercício de extrapolação: estamos em 2020, 20 anos depois de termos iniciado o século XXI, em plena era tecnológica, com exploração dos oceanos profundos e do universo para lá das suas costuras alcançáveis, temos coisas reais como a nanotecnologia e a medicina mais avançada com que alguma vez pudemos sonhar há uns anos (e não me venham com merdinhas, porque já ninguém morre de sida como se morria nos anos 80 e 90 e até temos doenças erradicadas) MAS não conseguimos ter uma mentalidade mais aberta, mais natural, mais flexível e criticamos a deficiência (o ideal era esconder todos num buraco negro), o vestuário libertino (o ideal era usar um hábito com capuz), a orientação sexual (o ideal era sermos todos uns sei lá o quê, nem tenho com que criticar isto) e mais uma meia dúzia de outras coisas que não deveria incomodar ninguém numa sociedade que se diz moderna e atualizada e inclusiva. Sabem o que isto quer dizer? Quer dizer que enquanto houver quem critique de forma saudosista um presente em prol de um passado ditatorial e deficitário em saúde, educação, valores, princípios, diversidade, pedagogia, etc. e houver quem defenda determinados crimes - violência doméstica é crime, discriminação é crime, segregação é crime - e se falar disto de forma leviana em forma de comentário a uma fotografia de miúdos descalços alinhados à frente da senhora professora porque "eram os mais atrasados na leitura e era assim que se ensinavam os mais burros" e se defenda que é com porrada, com insultos, com violência, com preconceito que se ensina, se defende, se apoia, se inclui, não evoluiremos enquanto sociedade. É triste mas é a realidade.
Quero muito acreditar que a amostra do que leio não é relevante em termos populacionais e desejo muitíssimo acreditar que a minha geração - e até a anterior - mais a geração seguinte serão capazes de transmitir às gerações seguintes que a diferença não é algo anormal, a diferença não é algo a recear, a diferença pode ser riqueza, a diferença é diversidade.
Não há problema nenhum em ter mulheres fortes e com carreiras incríveis, não há problema nenhum em não querer ter filhos ou em querer ter uma dúzia deles, não há problema nenhum na diversidade sexual, de género, neurológica.
Não somos todos iguais e não somos, de todo, todos um.
E a verdadeira riqueza social (talvez até humana?) está aí.
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